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Cultura

Centenário de Ray Bradbury é comemorado com edição de luxo de 'Fahrenheit 451', inéditos e maratona de leitura

Romance mais famoso do autor americano vendeu 75 mil cópias no Brasil só em 2019; para o ano que vem, a Biblioteca Azul promete fábula infanto-juvenil, ensaios de futurologia e novas traduções
O escritor americano Ray Bradbury, autor de 'Fahrenheit 451' Foto: V. Tony Hauser / Divulgação
O escritor americano Ray Bradbury, autor de 'Fahrenheit 451' Foto: V. Tony Hauser / Divulgação

SÃO PAULO – Quando Ray Bradbury nasceu, em 22 de agosto de 1920, a pandemia de Gripe Espanhola se aproximava do fim. A doença que matou 50 milhões de pessoas pelo mundo fez duas vítimas fatais na casa dos Bradbury em Waukegan, no Meio-Oeste americano. Em 1918, o vírus levara seu irmão Sam, gêmeo de Leonard Jr., e seu tio Samuel. E sua mãe, Esther, quase morrera de gripe comum.

Em “Becoming Ray Bradbury” (“Tornando-se Ray Bradbury”), o biógrafo americano Jonathan Eller, professor da Escola de Artes Liberais da Universidade Indiana, escreve que a família do futuro mestre da ficção científica desejava, silenciosa e talvez inconscientemente, que o pequeno Ray ocupasse o lugar o irmão morto. Em entrevista, ele também diz que Bradbury “compreenderia os sacrifícios que devemos fazer para salvar vidas” durante a pandemia de Covid-19. E acrescenta: o autor de "Fahrenheit 451", distopia em que livros são queimados, ficaria contente ao observar que as bibliotecas, sua grande paixão, conseguiram se reinventar em tempos de isolamento social.

– Bradbury quis preservar as bibliotecas como instituições livres e abertas que nos mostram a preciosidade da palavra escrita em um mundo onde somos constantemente distraídos por maravilhas tecnológicas – diz Eller, que assina um texto introdutório à edição de luxo de “Fahrenheit 451” que a Biblioteca Azul, selo da Globo Livros, envia às livrarias no mês que vem.

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Para celebrar o centenário do autor, a Biblioteca Azul planeja, até 2021, reeditar alguns títulos e também publicar textos inéditos. Tudo começou em junho com o lançamento de “Prazer em queimar”, coletânea de 16 contos (13 deles anteriores a “Fahrenheit 451”). Em setembro, também chega uma nova edição de “Zen na arte da escrita”, reunião de ensaios sobre a criação literária. No mês seguinte, sai uma nova tradução, assinada pelo escritor Eric Novello, de “O homem ilustrado”.

Pé atrás com a tecnologia

Bradbury revolucionou a ficção científica ao publicar contos antológicos quando o gênero vivia um boom nos anos 1950 e 1960, e livros “Crônicas marcianas”, uma reunião de narrativas curtas sobre a colonização do planeta vermelho. Sempre desconfiado da tecnologia, ele só autorizou a publicação de “Fahrenheit 451” em e-book aos 91 anos – poucos meses antes de sua morte, em junho de 2012 .

O romance apresenta uma sociedade distópica onde, distraídos pelas telas, ninguém mais lê e os bombeiros, em vez de apagar incêndios, queimam livros. O título indica a temperatura em que o papel entra em combustão: 451º Fahrenheit (ou 233º Celsius). Em 1966, o cineasta francês François Truffaut (1932-1984) adaptou o romance para o cinema. Bradbury gostou do filme, mas continuou antipático às telas. Dizia que os leitores eletrônicos cheiravam a “combustível queimado” e que a internet era “uma grande distração”.

No entanto, é graças a essa “grande distração” que os leitores de Bradbury podem celebrar o centenário do autor em tempos de pandemia e bibliotecas fechadas. Neste sábado, dia do centenário, a partir das 17h30 (horário de Brasília), ocorre uma leitura coletiva de “Fahrenheit 451” no site http://raybradburyreadathon.com/ . Participam 40 leitores: a maioria estudantes e bibliotecários, mas alguns famosos também confirmaram presença, como ator William Shatner e o escritor Neil Gaiman, que também assina um texto incluído na nova edição de “Fahrenheit 451”. O "Read-A-Thon" (maratona de leitura) deve durar cinco horas e continuará on-line por duas semanas.

Além dos textos de Eller e Gaiman, a edição de luxo de “Fahrenheit 451” traz trechos do diário que Truffaut manteve enquanto dirigia na adaptação cinematográfica do romance, e o ensaio “Luz ardente” no qual o próprio Bradbury recorda a escrita do livro e seu carinho por bibliotecas públicas. “Fui oficialmente ‘formado’ pela biblioteca”, escreveu.

Publicado originalmente em 1951, o livro traz 18 contos nos quais o protagonista encontra um homem cujo corpo é completamente coberto por tatuagens. Cada uma delas conta uma história.

– São contos muito diferentes entre si: aventura, guerra, casamentos problemáticos, autores que precisam se exilar em Marte e livros queimados – conta Novello, autor de “Ninguém nasce herói” (Seguinte), romance inspirado por Bradbury que descreve um Brasil totalitário onde livros são proibidos pelo governo.

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Capa da edição de luxo de "Fahrenheit 451", romance de Ray Bradbury, que a Biblioteca Azul lança em setembro Foto: Reprodução / Divulgação
Capa da edição de luxo de "Fahrenheit 451", romance de Ray Bradbury, que a Biblioteca Azul lança em setembro Foto: Reprodução / Divulgação

No ano que vem, saem alguns inéditos de Bradbury, como seus ensaios de futurologia e uma fábula infanto-juvenil sobre viagem no tempo. Também serão publicadas novas traduções da antologia de contos “O frutos dourados do sol” e dos romances “A árvore do Halloween”, “A morte é uma transação solitária”, “Licor de dente-de-leão” e “Um cemitério para lunáticos” – essas obras talvez ganhem novos títulos em português.

Segundo Mauro Palermo, diretor da Globo Livros, Bradbury faz cada vez mais sucesso entre os leitores brasileiros.

Fahrenheit vezes 9

As vendas de “Fahrenheit 451” quase decuplicaram nos últimos cinco anos: de 8.200 exemplares comercializados em 2015 para 75 mil em 2019. Para Novello, Bradbury ainda encanta porque sua ficção científica, preocupada com o impacto da tecnologia em nossas relações interpessoais, antecipou dilemas do nosso presente e também outros que ainda estão por vir.

– Bradbury fala de temas importantes de um jeito que é filosófico e também descontraído.

O biógrafo do autor, Eller, acredita que Bradbury nunca quis prever o futuro, mas “impedir que determinados futuros virassem realidade”.

– Se a obra de Bradbury nos ensina alguma coisa é a empatia. Aprender, por meio da literatura, a ver as coisas pelos olhos dos outros.