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Cultura

Chico Brown grava disco e diz ser orientado pelo feminino: 'Não vou combater o que sinto para parecer mais masculino'

Neto de Chico Buarque e filho de Carlinhos Brown, músico conta que tem canções inacabadas com o avô e que deseja afirmar raízes do Brasil em álbum de estreia: 'Nossa cultura não é sabotável pela política ou por quem quer nos silenciar'
Chico Brown: ‘Quero fazer jus aos meus antepassados sem deixar de ser eu’ Foto: Leo Aversa / Agência OGLOBO
Chico Brown: ‘Quero fazer jus aos meus antepassados sem deixar de ser eu’ Foto: Leo Aversa / Agência OGLOBO

Chico Brown chega para fazer a foto dessa matéria usando uma blusa do avô Chico Buarque. A roupa havia sido garimpada no armário de figurinos da avó Marieta Severo. Quando o fotógrafo Leo Aversa bateu o olho nela, reconheceu no ato a trama do tecido dentro do qual clicou o compositor de “Apesar de você” durante turnê em 2011/2012.

Além da camisa, Chiquinho (apelido de família) carrega o nome do “vô Ico”, como o chama desde a infância. Também escolheu o sobrenome artístico de outro homem da família, o pai, Carlinhos Brown. No entanto, o músico sempre foi guiado por um forte coletivo feminino pelo lado da mãe, Helena, segunda filha de Chico e Marieta. Ali, cresceu no meio de três irmãs, duas tias e três primas. Sem falar na avó, sua maior referência pessoal e política (“um norte na minha vida”, resume ele).

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No campo profissional, Marisa Monte, com quem convive desde criança por causa da parceria musical dela com seu pai, se tornou também sua própria parceira. A mais profícua. Cinco das 16 canções do novo disco da cantora, “Portas”, ele compôs com ela, além de ter participado da gravação de nove (“ouvia músicas de Marisa e pensava: ‘Parece meu romance”. Agora fiz de meus romances canções de Marisa”, analisa).

Por essas e outras, o artista aprendeu que ser um homem feminino não fere o seu lado masculino. É se deixando afetar por essa sensibilidade “quase mediúnica” das mulheres que o artista conduz sua vida e seu trabalho. Inclusive, entra no estúdio esse mês para gravar seu disco de estreia, previsto para ser lançado em 2022.

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— Vejo amigos se fechando à própria sensibilidade e feminilidade. Não vou combater o que sinto para parecer mais masculino ou maduro. Poder me apaixonar, fazer canção sem me preocupar se é melódica ou afeminada demais... — diz. — É um alívio, no Brasil de hoje, poder colocar as coisas em perspectiva pelo ponto de vista feminino. Livre a gente nunca está, mas, muitas vezes, me sinto alheio aos venenos da masculinidade tóxica porque não cresci ouvindo “homem não chora”. Meu pai sempre foi de obediência total à mamãe. Ambas as famílias têm mulheres fortes nas batalhas internas e conselhos. Isso nutre minha criatividade e escuta. Muitas artistas mulheres transcendem barreiras para as quais nós, homens, não nos atentamos. Carregam integridade artística invejável. Marisa é um grande exemplo disso.

O ar sábio e calmo, a eloquência e a gentileza com que pede à repórter para perguntar algo pessoal quase fazem esquecer que Chiquinho só tem 25 anos. É também o que leva Evandro Mesquita, com quem ele gravou canção nova da Blitz, a defini-lo com “garoto com alma de 200 anos”.

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— Ele é Chiquíssimo! Tem conhecimento absurdo de “música boa” de qualquer segmento. Talento e bom humor frutos da raiz sagrada e profunda dessa mistura de família queridas e nobres.

Para Marisa, Chiquinho é “é compositor de letra e música de mão cheia, de ouvido absoluto e de peito aberto”.

— Compõe com sofisticação e simplicidade, é destemido e inspirado — continua ela.

O avô já o definiu como “o melhor músico da família”. Foi ele quem detectou no menino a capacidade de identificar a nota musical exata de qualquer som quando, aos 11 anos, o neto o questionou sobre a música “Minha canção”. Sentou o moleque no piano e tirou a prova.

'Nossa cultura não é sabotável pela política'

Chico Brown cresceu entre a poesia do avô e o suingue do pai, quebrando as colheres de pau com que batucava nas panelas. É carioca, mas foi morar em Salvador com um ano de idade. Quando vinha ao Rio, pedia que "vô Ico" o levasse aos jogos do Flamengo no Maracanã. Tricolor, o cantor chegou até a encarar uma ida à torcida rubro-negra para alegrar o neto. Os dois são parceiros de pelada no Politheama. Chico, que não é bobo nem nada, pôs o neto de centroavante do seu time. Aproveita o pique do jovem para meter a bola na área adversária (“corro bastante, o que compensa minha falta de mira... consigo dar uns bons passes”, brinca Chiquinho).

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Também foi em solo carioca que Chiquinho aprendeu, sozinho, a tocar piano no instrumento da avó — detalhe: escolhido por Tom Jobim. Tinha menos de cinco anos. Agora, grava as composições autorais de seu primeiro disco. Multiinstrumentista, já registrou boa parte do violão, do piano e das vozes. O álbum será recheado de referências do "Brasil raiz". Nordeste, samba e a riqueza da música baiana se juntarão ao rock e ao progressivo, paixões de Chiquinho. Ele também quer sonoridade de jazz e orquestra de pife.

—  É uma afirmação da nossa cultura para dizer que ela está presente, viva e resistente. Que não é algo sabotável pela indústria, política ou por forças que querem nos silenciar —  acredita. —  Quero chamar atenção para tradições do Brasil que andam esquecidas. Coisas que a galera sente falta de ver sendo feitas pelos mais jovens. De Luiz Gonzaga, à música de Raul, além das referências que todo mundo espera de mim, que são a obra do meu pai e do meu avô.

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Com Chico Buarque, ele compôs "Massarandupió", registrada no disco "Caravanas" (2017), e tem várias outras canções por terminar. Melodias que mandou para o avô colocar letra e ainda não sabe se alguma ficará pronta para o disco ("meu avô está na fase escritor", conta ele, referindo-se ao novo livro que Chico está prestes a lançar). Pensa em registrar "Jorge Maravilha", que já toca nos shows. Outro dia, fez uma versão de "Geni" com críticas diretas ao governo, à homofobia e ao racismo, preconceito que enfrenta mesmo sendo de família privilegiada e que tenha crescido em ambiente progressista.

'Há pessoas que não aceitam ver o preto no lugar de cidadão'

—  A gente cresce convivendo com isso. Às vezes fortalece, às vezes, dá aquela decepção com a Humanidade. Envolve ignorância e síndrome de vira-lata por a gente não conhecer a própria riqueza  e mistura. Também passa pela inveja de pessoas que não aceitam ver o preto no lugar de cidadão, como alguém que come no mesmo restaurante ou viaja no mesmo avião.

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Voltando à música, o álbum de Chiquinho está sendo planejado há alguns anos, mas o perfeccionismo do músico, sempre em busca de um arranjo que pode melhorar, torna tudo mais demorado. Um dos desafios tem sido bater o martelo sobre as canções ("parece que sentem ciúme umas das outras" ). São tantas que talvez emende um segundo disco.

—  Quero começar com o pé direito. Mas acho que depois que lançar esse primeiro disco, vai ser uma tempestade de músicas novas.

De certo, o disco terá "Azul", canção que soa meio Clube da Esquina e "Rumo ao destino", um forró com letra biográfica, que liga Rio e Salvador e diz: "Lá dizem que eu sou daqui/ aqui dizem que eu sou de lá".

— Parece que não sou soteropolitano suficiente para o baiano e nem carioca suficiente para o cidadão fluminense. Cresci lá e cá, o sotaque é misturado, bebo da música de um lado e de outro. Acho que são complementares. Tenho a preocupação de fazer essa interseção entre espaços e gerações. Quero fazer jus aos meus antepassados, a toda essa ancestralidade, e conseguir acrescentar um diferencial, levar isso adiante sem deixar de ser eu mesmo.