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Cultura

Chico César: 'Fico frustrado quando gostam de mim só pela minha posição política'

Nas redes sociais, cantor, que aponta fascismo na cultura do cancelamento, divide público com canções sobre cloroquina e bolsonaristas e elogia Pabllo Vittar e Anitta por se posicionarem
Chico César elogiou posicionamento de artistas da nova geração Foto: Rodrigo Pirim
Chico César elogiou posicionamento de artistas da nova geração Foto: Rodrigo Pirim

RIO — Chico César não sabe o que fazer com as mais de 80 canções que compôs desde o início da pandemia. Amigos ilustres, como Maria Bethânia , já receberam algumas. Um disco novo do próprio cantor e compositor ainda está no campo das ideias (“Teria que ser uma série para caber tudo”, ri). Por ora, o paraibano tem disponibilizado algumas (várias) em seu Instagram — e atraído comentários ora elogiosos, ora queixosos do teor político das letras. Só que, com Chico, nada fica sem resposta.

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No início do mês, a réplica do artista a um fã que lhe pediu “carinhosamente” que “evitasse as músicas de cunho político-ideológico” viralizou nas redes sociais. "Não me peça um absurdo desse, não me peça para silenciar, não me peça para morrer calado. Respeite ou saia. Não pense que a fúria da luta contra as opressões pode ser controlada. Eu sou parte dessa fúria. Não sou seu entretenimento", bradou Chico César nos comentários da publicação. Ao recordar o episódio, o cantor afirma que não imaginava que a fala repercutiria tanto.

— Até me assustei um pouco com a proporção que a coisa tomou. Devo ter respondido vinte pessoas publicamente naquele post. Todo dia eu faço isso — declara, sereno, em entrevista ao GLOBO por telefone, na tarde de seu 57º aniversário.

A resposta do cantor Chico César a um fã viralizou nas redes Foto: Reprodução
A resposta do cantor Chico César a um fã viralizou nas redes Foto: Reprodução

Na música comentada pelo fã, “Pisadinha”, não há referências explícitas a temas políticos ou sociais. Em outras, como “Pico”, o cantor escancara seu rito de transformar as coisas do mundo em música: “Eu vou tomar vacina / Quem não quiser, que tome cloroquina”, versa. “Inumeráveis”, uma das primeiras da quarentena, homenageia as vítimas da Covid-19: “Se números frios não tocam a gente / Espero que nomes consigam tocar”, diz a letra, um poema de Bráulio Bessa musicado por Chico.

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Em agosto passado, uma das canções da nova safra pôs o nome do artista na pauta da Câmara Municipal de João Pessoa, que aprovou, por unanimidade, um voto de repúdio proposto pela vereadora Eliza Virgínia (Progressistas). O motivo? Os versos iniciais de “Bolsominions”: “Bolsominions são demônios / Que saíram do inferninho direto pro culto / Pra brincar de amigo oculto / Com Satã num condomínio”. Na avaliação dos parlamentares, tratava-se de um ato de intolerância religiosa. O cantor rebate:

— Esses versos foram usados por uma ala da extrema-direita para dizer que eu estava agredindo evangélicos. Eles é que se apossaram da fé cristã, das instituições da cristandade para fazer as suas políticas nocivas. Felizmente, muitos cristãos saíram em minha defesa e até me agradeceram pela canção.

Irmão preso pela ditadura

O último álbum de Chico, lançado em 2019, deixa claro no título a sua bandeira: “O amor é um ato revolucionário” . No disco, há referências ao incêndio do Museu Nacional (“Luzia negra”), ao nepotismo em instituições brasileiras (“Pedrada”) e à transfobia (“O homem sob o cobertor puído”). Pura política, entremeada a versos outros sobre os afetos e as paixões, como, diz ele, acontece em toda a sua obra.

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— As pessoas pensam que "À primeira vista" é só uma música de amor. Ao cantar “quando ouvi Salif Keïta / Prince, dancei”, estou me referindo a dois artistas negros: um no centro do mundo pop anglófono, outro representando os afrodescendentes que vivem na Europa. É geopolítica e pan-africanismo cantados de uma forma doce. Todas as minhas canções são políticas — explica.

Não podia ser diferente. A primeira vez que Chico César pensou no assunto foi logo aos cinco anos de idade, quando seu irmão mais velho foi preso pela ditadura militar por fazer parte do movimento estudantil. Mais de meio século depois, o caçula de sete filhos ainda se lembra, com detalhes, do momento em que a polícia bateu à sua porta em Catolé da Rocha, no interior da Paraíba, e começou a revirar a casa. E jamais esqueceu o questionamento de seus pais aos agentes (“Só porque somos pretos e pobres, acham que podem humilhar?”).

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Ainda distante dos palcos por causa da pandemia, o cantor se diz um entusiasta das redes sociais como plataforma para o posicionamento que julga imprescindível a um artista (“Não se posicionar também é se posicionar”, afirma várias vezes durante a entrevista, como um mantra). Mas se queixa de duas coisas: a violência da tal cultura do cancelamento (“Isso é muito baixo. O aniquilamento físico e simbólico do outro é manifestação do fascismo”, argumenta), e o foco que alguns fãs dão, mais ao discurso político que à própria arte.

— Gostaria muito que as pessoas me seguissem pela minha música. Muitas delas entram na minha página para elogiar o meu posicionamento. E os solos que eu fiz? E a canção em si? Me sinto um pouco frustrado quando gostam de mim só pela posição política, assim como fico completamente frustrado quando deixam de me seguir por causa disso. Eu não vou deixar de ouvir a obra por causa do cidadão, e isso não quer dizer que esteja “passando pano”. A gente precisa dar lugar à complexidade — desabafa.

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Apesar das umas e outras reações mais exaltadas de internautas às composições, Chico César não pretende parar, nem de escrever, nem de postar.  Não considera como ameaças as mensagens que recebe de gente que diz coisas como "espera só você vir fazer show na minha cidade". O "block" lhe é suficiente. Quando a crítica é mais gentil, se diz aberto ao diálogo. Mas é irredutível em sua fúria contra as opressões.

— A minha política normalmente é doce. Eu sou amoroso. Quando alguém chega para mim e me pede, com educação e gentileza, que eu não seja político, eu respondo, também com educação e gentileza, que é impossível. Não se posicionar diante de uma opressão é tomar o lado do opressor. Tudo o que você faz, ecoa. Acho muito bonito o que esses artistas mais jovens, a Pabllo, a Anitta , a Jojo Todynho , estão fazendo, também dizendo com letras graúdas, como se carregassem holofotes: nós somos políticos.