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Cultura

Christian Dunker e a psicanálise no espaço público

Ativo nas redes e nos debates surgidos no último ano, ele diz que demanda da área cresceu com a crise, mas recebe críticas da academia ‘por estar supostamente perdendo o rigor’
O psicanalista Christian Dunker em sua casa, em São Paulo: "É injusto não distribuir o capital cultural. Vamos falar só dentro do nosso condomínio?" Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo
O psicanalista Christian Dunker em sua casa, em São Paulo: "É injusto não distribuir o capital cultural. Vamos falar só dentro do nosso condomínio?" Foto: Marco Ankosqui / Agência O Globo

SÃO PAULO — Uma das frases preferidas de Christian Dunker , dita por Jacques Lacan em 1953, é a seguinte: “Deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. Psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP), Dunker se esforça para alcançar a subjetividade de nossa época e ainda explicá-la em aulas, livros, entrevistas, redes sociais e até no YouTube. Ou melhor: no “YouTchube”, como ele prefere. O “Falando Nisso”, canal onde ele responde a perguntas sobre psicanálise, acumula mais de 300 vídeos e 255 mil inscritos.

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Dunker é um dos psicanalistas que, nos últimos anos, saíram de seus consultórios direto para o espaço público, dispostos a ajudar tratar as neuroses do paciente Brasil. Ele em nada lembra o clichê do psicanalista que nunca emite opinião e, quando fala, é por meio de um jargão incompreensível. Por essa facilidade em expor ideias de maneiras claras, desde o início da pandemia ele tem aparecido cada vez mais. Quando todo mundo se fechou em casa, Dunker foi um dos psicanalistas convocados para acalmar os confinados. É raro passar uma semana sem ler uma entrevistar dele na imprensa, ouvi-lo num podcast ou vê-lo numa live.

Acadêmico respeitado, venceu um Prêmio Jabuti, em 2012, com o livro “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica” (Annablume, reeditado pela Zagodoni), e vem ganhando cada vez mais projeção desde o lançamento, em 2015, de “Mal-estar, sofrimento e sintoma” (Boitempo), no qual critica a “lógica do condomínio” que governa a vida social brasileira. No ano passado, ele apareceu até na propaganda eleitoral de Guilherme Boulos, candidato do Psol à Prefeitura de São Paulo em 2020.

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Numa conversa por Zoom, Dunker arrisca hipóteses para explicar a ocupação psicanalítica do debate público. Segundo ele, a recepção da psicanálise por aqui foi contemporânea das tentativas de interpretação crítica do Brasil, nos anos 1930. Por sua origem germânica, as ideias de Freud serviram de contraponto ao positivismo francês que inspirou nossa República. Dunker também recorda que psicanalistas como Jurandir Freire Costa e Contardo Calligaris (além de Hélio Pellegrino antes deles) participam há tempos da vida pública brasileira. No entanto, a melhor explicação para a demanda pela psicanálise é a crise.

— Quando o Brasil encontrar um novo patamar de crescimento e estabilidade, talvez a gente saia de cena e a psicanálise não seja mais tão interessante para pensar o poder — diz Dunker.

Para alcançar a subjetividade de nossa época, tornou-se imprescindível pensar a depressão, doença que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), atinge 4,4% da população mundial, mas que quase não aparece nos textos de Freud, Lacan e outros teóricos clássicos da psicanálise. Na tentativa de ajudar a preencher essa lacuna, Dunker está lançando “Uma biografia da depressão”, pelo Paidós, selo de psicologia da Planeta. No livro, ele apresenta os antepassados da doença, como a acídia dos medievais e a melancolia descrita por Freud, e conta como ela foi normalizada a partir dos anos 1970, concomitantemente ao surgimento de novos antidepressivos e ao triunfo do neoliberalismo.

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Defensor da cura pela fala, Dunker não se opõe aos antidepressivos (ele estima que 90% dos pacientes “se medicam ou usam substâncias para modular a paisagem mental”) e associa “nossas formas de sofrer” aos avanços e recuos da História. Junto com o filósofo Vladimir Safatle e o psicanalista Nelson da Silva Junior, ele organizou o livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” (Autêntica), lançado em janeiro.

— Temos que olhar para os diagnósticos a partir da história deles e pensar como nossas formas de nomear o sofrimento se transformaram com o tempo até chegarmos à depressão. A partir dos anos 70, a depressão aparece com uma lógica de falta e excesso. O depressivo sofre com a falta de interesse, de desejo, e com o excesso de autocontrole, de autoavaliação.

“Uma biografia da depressão” ilustra bem o esforço de Dunker para transmitir as reflexões psicanalíticas com rigor e de modo acessível. Ele cita inúmeros autores, estudos e estatísticas e aposta numa linguagem bem-humorada e às vezes irônica. Num capítulo, faz uma longa entrevista com a Depressão. Noutro, apresenta um “deprimido literário”: Brás Cubas, de Machado de Assis .

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Em 2019, junto com Cláudio Thebas, Dunker lançou “O palhaço e o psicanalista”, que já vendeu mais de 40 mil exemplares e agora volta às livrarias em nova edição pelo selo Paidós. Em abril, os autores se juntam novamente para dar um curso sobre “ludicidade e saúde mental” na plataforma HUG. Ao GLOBO, Thebas chama Dunker de “extraordinário comunicador”.

— A academia é muito fechada, e o Dunker faz questão de abrir. Ele é como o Mister M: revela o truque. É por isso que ele às vezes leva umas bordoadas da academia, porque lá é que nem receita de avó: não pode contar o segredo — diz Thebas.

‘Luta de classes’

Dunker conta que às vezes sofre críticas por se meter com política ou aparecer demais na mídia. Já lhe disseram até que ele fala tanto que já não é mais psicanalista.

— Recebo crítica por estar em evidência, por popularizar a psicanálise, por estar supostamente perdendo o rigor, porque psicanalista não apoia candidato... É mais difícil lidar com essas encrencas do que brigar com Olavo de Carvalho ou Rodrigo Constantino — diz Dunker, que atribui parte das críticas à “luta de classes” que há na psicanálise, entre os que preferem o silêncio dos consultórios e os que se esforçam para alcançar a subjetividade de nossa época. — A gente já ficou encastelado muito tempo. É injusto não distribuir o capital cultural. Vamos falar só dentro do nosso condomínio?

Capa de "Uma biografia da depressão", novo livro do psicanalista Christian Dunker, publicado pelo Paidós, selo da Planeta Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Uma biografia da depressão", novo livro do psicanalista Christian Dunker, publicado pelo Paidós, selo da Planeta Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“Uma biografia da depressão”

Autor: Christian Dunker.

Editora: Paidós.

Páginas: 240. Preço: R$ 46,90.