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Cultura Coronavírus

Cinema pós-Covid promete poltronas espaçadas, volta do drive-in e trégua com o streaming

Enquanto mercado exibidor na Europa começa a reabrir com medidas como maior espaço entre cadeiras e bilheteria on-line, indústria audiovisual no Brasil enfrenta desafio de continuar existindo
Distanciamento e máscaras, num cinema de Praga, na República Tcheca: novos hábitos Foto: Michal Cizek / AFP
Distanciamento e máscaras, num cinema de Praga, na República Tcheca: novos hábitos Foto: Michal Cizek / AFP

RIO Pipoca quentinha e uma multidão reunida para curtir um bom filme. Enquanto o Brasil vive a pandemia da Covid-19, tudo que era corriqueiro no cinema agora parece um sonho distante. Só uma coisa é certa: depois disso tudo, a experiência de ir a uma sala de exibição não será a mesma.

Um dos epicentros do vírus na Europa, a Itália anunciou que seus cinemas serão reabertos em junho. Eles deverão cumprir medidas de distanciamento social como espaçamento entre assentos e venda de ingressos on-line. No Reino Unido, o retorno está previsto para 4 de julho, também seguindo protocolos de segurança.

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Lançamentos em julho

Nos Estados Unidos, líder em número de mortes pelo novo coronavírus, o clima é de indefinição. Mesmo assim, há datas marcadas para grandes lançamentos, como “Unhinged”, thriller com Russell Crowe, em 1º de julho; “Tenet”, novo filme de Christopher Nolan, em 17 de julho; e “Mulan”, live-action da Disney, em 24 de julho.

E no Brasil? Presidente da Federação Nacional das Empresas Exibidoras (Feneec), Ricardo Difini diz que os cinemas daqui se preparam para retornar na primeira semana de julho, seguindo o calendário de estreias globais.

— Precisamos estar prontos — pondera Difini. — Teremos um protocolo de procedimentos detalhado e comum a todos os cinemas.

25% de ocupação

Para Paulo Sérgio Almeida, do portal “Filme B”, poltronas espaçadas separando espectadores devem mesmo virar regra. Ele prevê uma capacidade máxima de ocupação de 25% por sala.

— Exibidores não querem que o espectador se sinta entrando num hospital. Quem tiver cinema maior vai se aproveitar mais disso — adianta ele, que prevê filmes médios e nacionais como os mais impactados, pela necessidade de manter blockbusters em cartaz por mais tempo.

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Um retorno parcial pode ser tão arriscado quanto o cenário presente, avalia o presidente do Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual (Sicav), Leonardo Edde:

— Se as salas retornam assim, elas perdem os benefícios do decreto de calamidade pública, como direito a suspensão de aluguéis e contratos. Imagine uma sala retornar com despesa de 100%, mas com condição de usar 25% da sua capacidade. Será que vale?

Volta do drive-in

No vácuo deixado pelas salas de exibição, surge um movimento de volta do drive-in . O Cine Drive-In Brasília, oficialmente o último sobrevivente do país, afirma ter registrado aumento de 200% de público desde o começo da quarentena. E está previsto para julho um projeto da Dream Factory que levará espaços drive-in para oito capitais.

Porém, na visão de alguns especialistas, trata-se mais de nostalgia do que saída para a crise. Para o diretor do Filme B, o drive-in daria apenas uma sobrevida aos exibidores:

— Pelo lado do consumidor, é um programa diferente, bacana para registrar nas redes sociais. Economicamente, não vai ser uma tábua de salvação.

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Outro ponto de interrogação sobre a reabertura de salas é se ela ocorrerá no país todo. Diante do jogo de empurra entre governo federal e estados sobre o funcionamento do comércio, a decisão final de liberar cinemas deve ficar na mão de governadores e prefeitos — hoje, aliás, há um cinema aberto no Rio Grande do Sul. O retorno localizado também pode acontecer por causa da própria evolução da doença, que afeta mais algumas regiões do que outras. O uso de máscaras nas salas, portanto, pode depender de protocolos locais.

O papel do streaming

No campo da distribuição, há outro desafio: a adesão a plataformas de streaming e vídeo sob demanda. Um exemplo foi o do filme "Trolls 2" , que teve a estreia nos cinemas cancelada para ir direto ao streaming e, mesmo assim, arrecadou US$ 100 milhões. Após a NBCUniversal, responsável pela franquia infantil, admitir que poderia pular a janela de exibição nos cinemas com outras produções, a AMC Theatres, maior rede exibidora dos EUA, anunciou um boicote aos filmes do conglomerado.

— O mercado distribuidor tem, a curto prazo, alternativas para escoar parte do line-up — reconhece Bruno Wainer, da Downtown Filmes. — Mas a tensão é grande em relação aos produtos “premium”, cuja exploração não pode abrir mão das salas de cinema.

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A pesquisadora Ana Paula Sousa acredita que o impacto agravará também o fluxo de produção, já estagnado. Uma exceção é a adaptação do conto de Stephen King “Children of the corn”, que iniciou filmagens na Austrália após a equipe se isolar conjuntamente:

— Será que os autores vão evitar histórias com elencos de idade mais avançada, por exemplo? A quantidade de exigências novas para voltar ao set vai dificultar tudo.

Enquanto o Brasil não contém a evolução da Covid-19, o desafio é conseguir manter os cinemas existindo até o fim da pandemia. Sócia do Estação, Adriana Rattes conta que a rede de cinemas, fechada desde 13 de março, só conseguiu pagar os salários de abril graças ao adiantamento de um ano inteiro do patrocínio da NET.

— Mas não resolve tudo pelos próximos meses, fora que não conseguimos nem o financiamento para a folha de pagamento, pois o governo nos considerou “grandes”. Tampouco conseguimos capital de giro no BNDES, pois, para eles, somos muito pequenos. E os bancos privados são conservadores na crise, têm receio de emprestar.

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Do lado do governo, segue o silêncio sobre o que fazer com o audiovisual, responsável por mais de 300 mil empregos no país. A indústria continua à espera de reunião do comitê gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), necessária para que sejam liberados recursos já reservados para o setor. Procurada, a Agência Nacional de Cinema (Ancine) diz que também depende do encontro para tirar do papel suas propostas para mitigar o impacto da Covid-19, como uma linha de crédito emergencial. Já o Ministério do Turismo respondeu apenas listando medidas de renovação de prazos para projetos em andamento. O Ministério da Cidadania, também envolvido, não retornou.

No dia 8, o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu um ofício à Secretaria Especial da Cultura e à Ancine cobrando explicações sobre a paralisação das políticas de fomento, como a suspensão do repasse do FSA em 2018 e 2019. As entidades têm até o dia 23 para responder.