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Cultura

Citado por Mandetta, 'Mito da caverna' aconselha falar a verdade a quem não quer ouvir

Filósofos ouvidos pelo GLOBO comentam o texto platônico citado pelo ministro da saúde e afirmam que voltar às sombras é importante
'Mito da caverna' foi citado por Mandetta Foto: Arte de André Mello
'Mito da caverna' foi citado por Mandetta Foto: Arte de André Mello

SÃO PAULO – Dando conta das leituras na quarentena? Na segunda (6), o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta , contou ter aproveitado o fim de semana para ler o “Mito da caverna”, que aparece em “A República”, de Platão. Ou melhor: reler. Mandetta, de 55 anos, diz que desde a adolescência revisita as palavras do filósofo grego, discípulo de Sócrates, que perambulou por Atenas entre os séculos V e IV a. C.

– Já li umas 20 vezes e até hoje não consegui entender – disse Mandetta, na entrevista coletiva em que garantiu que seguiria à frente do Ministério da Saúde, a despeito dos conflitos com o presidente Jair Bolsonaro.

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No Livro VII de “A República”, Platão narra um diálogo de seu mestre, Sócrates , com Glauco. Sócrates pede a Glauco, que era irmão de Platão, para imaginar homens que, desde a infância, vivem acorrentados numa caverna, sem poder se mexer ou espiar o lado de fora. Lá dentro, eles veem apenas as sombras de objetos manuseados por homens do lado de fora. Quando um deles se liberta das correntes e sai da caverna, vê o sol que ilumina os objetos dos quais ele antes só conhecia as sombras. Deslumbrado, ele se pergunta se deve retornar e contar a seus companheiros do mundo que existe para além da caverna, mesmo que eles o julguem louco ou até o matem.

Depois da menção de Mandetta, aumentaram as buscas pelo “Mito da caverna” na internet e começaram especulações sobre o que o ministro estaria insinuando ao citar Platão. Ele estaria ironizando o apelido dado ao presidente Jair Bolsonaro por seus apoiadores, “mito”? Ou sugerindo que ele próprio, ao recorrer à ciência para vencer a epidemia de Covid-19, seria como o homem liberto das correntes que vê a luz e volta para pregar a palavra da razão até para quem não quer ouvi-la, enquanto o presidente, crítico das medidas de isolamento social, preferiria continuar nas sombras?

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O mito platônico trata, de fato, de conhecimento e ignorância. É sobre sair da caverna escura para dar de cara com a realidade iluminada pela razão. No entanto, ressaltam estudiosos, a alegoria deve ser entendida no contexto da “República”, a principal obra de Platão, relida à exaustão por inúmeros filósofos que nela se inspiraram para pensar utopias políticas, defender a educação para todos ou para identificar tendências antidemocráticas em seu autor.

— Os fios condutores de “A República” são investigações sobre a justiça e o bem, que é difícil de definir — diz Ana Maria Yamin, professora de filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). — Para nos ajudar a intuir o bem como condição do conhecimento, Platão coloca, na boca de Sócrates, três imagens: o Sol, uma linha dividida entre o sensível e inteligível e o mito da caverna, que é uma alegoria que explica que a maior parte dos homens permanece na ignorância, mas o filósofo é aquele que sai da caverna e vê as coisas como são.

Voltar às sombras

Professor do Colégio Pedro II e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Germano Nogueira Prado alerta: não basta sair da caverna e ver as coisas como elas são, é preciso voltar às sombras.

— Leituras imediatas tendem a achar que as sombras são um conhecimento falso. Não é falso, é parcial, porque quem conhece só sombras não conhece suas causas — diz. — Quem sai da caverna e conhece as causas fica tentado a permanecer lá fora, ao Sol, mas é importante voltar ao cotidiano da caverna. De posse desse conhecimento, ele pode compreende a realidade como um todo, se acostumar de novo ao jogo político das sombras e, assim, agir politicamente, mas melhor do que quem só conhece as sombras, com discernimento e justiça, orientado pela ideia de bem (o Sol).

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Sim, jogo político. “A República” expõe o pensamento político de Platão e como ele defendia que se organizasse a pólis grega. Para o filósofo, os cidadãos seriam divididos em uma classe de comerciantes e artesãos, uma de guardiões e uma terceira de filósofos, que seriam os responsáveis pelo governo. Não é o nascimento que define a classe a que se pertence, mas as habilidades de cada um, aprimoradas por uma educação oferecida pela pólis.

É esse compromisso pedagógico que move o filósofo a retornar à caverna, ainda que seus antigos companheiros prefiram dar crédito às sombras, desprezem o conhecimento racional e ameacem matá-lo.

— O filósofo precisa fazer o esforço de voltar à caverna, se adaptar de novo à escuridão e lidar com o fato de que a maioria das pessoas lá não quer escutá-lo, não está nem aí — diz Rafael Saldanha, professor de Filosofia da UFRJ. — Mandetta parece ter encarnado o filósofo que sai da caverna quando disse que passou o final de semana lendo e depois voltar para afirmar uma coisa que alguns não querem saber. Para Platão, o discurso do filósofo é mesmo ingrato.

O filósofo Luiz Felipe Pondé duvida que Mandetta quis mandar um recado a Bolsonaro ao citar o “Mito da caverna”, mas reconhece que podemos ler Platão à procura de lições políticas.

— O “Mito da caverna” é um dos textos fundadores da filosofia, é sobre o despertar do homem para o conhecimento e para a liberdade que vem dele. Mas, ao citar Platão, também poderíamos lembrar as críticas dele à democracia, chamada de “demagógica” e “tagarela” — afirma.