Em fevereiro de 1965, um punhado de intelectuais latino-americanos — o economista brasileiro Celso Furtado, o historiador chileno Osvaldo Sunkel, o sociólogo colombiano Orlando Faks Borda e outros— viajou a Londres para participar da conferência “Obstáculos à mudança na América Latina”, organizada pelo Royal Institute of International Affairs, também conhecido como Chatham House, um think tank no qual trabalhava o historiador chileno Claudio Véliz. A conferência foi uma das primeiras ocasiões em que estudiosos de diferentes cantos da América Latina se encontraram para pensar juntos o desenvolvimento social e econômico do continente.
Eles decidiram manter contato e escrever uns aos outros periodicamente para se atualizarem quanto aos projetos mais recentes e compartilharem análises sobre os desafios socioeconômicos de seus países. Para organizar a troca epistolar, fundaram o Clube Bianchi’s, batizado em homenagem à pizzaria que frequentavam durante a conferência. Os primeiros membros do Clube Bianchi’s foram, além de Furtado, Sunkel, Faks Borda e Véliz, o brasileiro Helio Jaguaribe e o chileno Jacques Conchol. Apesar de não terem partilhado “o pão e o vinho de Bianchi’s”, o chileno Aníbal Pinto e o brasileiro Fernando Henrique Cardoso logo se juntaram ao grupo.
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O Clube Bianchi’s funcionava como uma espécie de grupo de WhatsApp analógico. As cartas eram enviadas para a secretária de Véliz, em Londres, que as fotocopiava e enviava para cada membro em seu respectivo país. Cada um escrevia em seu idioma. Às vezes, chegava uma ou outra missiva em inglês, ditada por Véliz a sua secretária. Algumas das cartas do Bianchi’s foram incluídas no recém-lançado “Celso Furtado: correspondência intelectual, 1949-2004”, organizado pela jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva do economista . O volume reúne quase 300 cartas trocadas por Furtado com cerca de 80 interlocutores (Raúl Prebisch, Bertrand Russelle Lina Bo Bardi entre eles) e foi lançado para marcar o centenário de nascimento do intelectual paraibano, comemorado no ano passado.
D’Aguiar foi a primeira a perceber a semelhança entre o Bianchi’s e os “grupos de zap” que se multiplicaram hoje. Ao GLOBO, ela conta que Furtado deixou uma pasta com 76 cartas do clube. Numa outra pasta, a da correspondência com Véliz, há pouco mais de 20 cartas nas quais o economista anotou “Bianchi’s”.
'Pensamento latino-americano'
Antes mesmo da viagem a Londres, Celso Furtado já cogitava “ manter um sistema de correspondência” com os colegas, como escreveu a Aníbal Pinto no início de fevereiro de 1965. Já o historiador Osvaldo Sunkel confessa que, por não ser organizado como o colega brasileiro, não guardou as cartas do Bianchi’s e não se lembra do que elas diziam, embora se recorde das idas à pizzaria londrina. No entanto, ele afirma que a troca intelectual entre eles foi extremamente frutífera.
— Éramos um grupo de cientistas sociais entusiasmados que descobrimos que, cada um em seu país, trabalhávamos em temas e propostas similares — conta Sunkel. — A partir daí, começamos a pensar o desenvolvimento econômico e social da América Latina, em torno, principalmente, dos debates da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) , que ficaram conhecidos em todo o mundo. Até hoje é frequente encontrar referências a nossos nomes na literatura sobre o desenvolvimento latino-americano.
Numa carta a Aníbal Pinto, poucos meses após a reunião em Londres, Furtado descreveu o Bianchi’s como um grupo empenhado em “dar uma formulação à problemática latino-americana” e também a um “novo projeto histórico para nossa área cultural comum”. Escrevendo a Fernando Henrique Cardoso, ele pareceu mais entusiasmado: “Constituíamos hoje o embrião de uma escola de pensamento”.
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O ex-presidente ressalta que ver o mundo por mentes latino-americanas era uma novidade à época, sobretudo no Brasil, onde o pensamento ainda era “ou europeizante ou americanófilo”.
— A proposta do Bianchi’s era criar um pensamento latino-americano original e que levasse em conta os interesses da região. Só alguém como o Celso, que conhecia o mundo, podia inspirar isso — recorda Fernando Henrique. — Nossa obsessão era pensar o “desarrollo” e a industrialização do continente. Éramos movidos por um sentimento latino-americano e, portanto, antiamericano.
Desejo de expansão
Furtado foi o primeiro brasileiro a integrar a Cepal (criada pelas Nações Unidas para promover a cooperação econômica entre os países latino-americanos e caribenhos), ainda em 1949, antes de ele criar a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, e atuar como ministro do Planejamento, entre 1962 e 1964, durante o governo de João Goulart. No entanto, foi nos Estados Unidos, onde se exilou após o golpe militar, que Furtado se conscientizou da importância de pensar América Latina.
— Nos EUA, ele percebe que os americanos já estavam pensando a América Latina, tanto na academia quanto na política, insinuando que nós éramos incapazes de pensar nossos próprios problemas. Como vinha da Cepal, Celso não engoliu isso — diz D’Aguiar, que descreve a correspondência intelectual de Furtado como um “laboratório de ideias”.
O desejo de Furtado era que essas ideias não circulassem apenas dentro do Bianchi’s. Em várias cartas ele insistiu que o grupo encontrasse (ou criasse) uma revista para publicar ensaios. O ex-ministro do Planejamento também sugeriu algumas regras para que a intenção original não se perdesse (como ocorre com muitos grupos grupos de WhatsApp). “É necessário que se restabeleça o caráter epistolar do grupo”, escreveu no final de 1966. “Cada membro deve comprometer-se a escrever o mínimo de uma página mensalmente sobre os próprios projetos”. Ele também recomendou moderação na hora de adicionar mais membros.
Quanto à revista em que publicariam seus trabalhos, Furtado propôs um acordo com a já bem estabelecida “Desarollo Econômico”, de Buenos Aires, na qual publicariam também textos em português, com notas de rodapé que traduzissem, para o espanhol, algumas palavras-chaves, como poupança (“ahorro”). Os chilenos preferiam uma revista sediada em Santiago, ligada à Universidade do Chile e editada por eles. Sugeriam o nome “Panorama”, mas Furtado lembrou que já existia uma revista argentina com o mesmo título, “muito conhecida e de qualidade duvidosa”. A “Panorama” não passou de um projeto e o grupo se associou à “Desarrollo Econômico”, que publicava, sempre em espanhol, os ensaios escritos por membros do clube.
Segundo D’Aguiar, o Bianchi’s nunca teve um fim, mas foi “murchando” depois que o objetivo principal foi cumprido: encontrar uma revista em que eles pudessem publicar suas reflexões sobre os impasses da América Latina. Ela lembra que o intercâmbio de estudantes do continente em universidades europeias aumentou nos anos seguintes, graças também aos esforços dos membros do Bianchi’s. Em 1966, o próprio Furtado passou a lecionar economia latino-americana na Universidade Sorbonne, em Paris, onde deu aulas de 1965 a 1985, quando seguiu para Bruxelas, como embaixador brasileiro junto à União Europeia, um ano antes de voltar ao Brasil.
Trechos:
“É perfeitamente claro que fomos incapazes de formular um pensamento operacional no plano ideológico e que nos distribuímos entre repetidores de slogans e perplexos. (...) Demoramos muito a compreender que nosso problema básico é criar uma sociedade viável (...) e não aperfeiçoar o sistema capitalista para reduzir as dores do desenvolvimento ou superar o capitalismo por considerar que ele se teria esgotado historicamente.” (Celso Furtado, 3 de fevereiro de 1965)
“Cada vez mais me preocupa o ‘problema’ americano. Estou pondo algum tempo a estudá-lo com miras a escrever um livro sobre os Estados Unidos para ser lido na América Latina. (...) Vejo que o horizonte se fecha diante de nós e que as possibilidades de atuar como intelectual se reduzem de maneira angustiante”. (Celso Furtado, 10 de maio de 1965)
“Sinto que o horizonte se fecha e o futuro se torna cada vez mais algo enigmático. A vida intelectual em épocas como esta é uma espécie de meia loucura.” (Celso Furtado, 10 de maio de 1965)
“Que espécie de gente estará saindo de nossas universidade dentro de três a cinco anos? (...) Pergunto-me se não nos cabe dedicar parte do nosso tempo a preparar livros que possam servir de texto nas nossas universidades.” (Celso Furtado, 21 de dezembro de 1966)
Serviço:
“Celso Furtado: Correspondência intelecual”
Organização: Rosa Freire d'Aguiar. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 432. Preço: R$ 99.