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Cultura

'Colocar negros no castelo não resolve nada', diz autor de 'Game of Thrones africano'

Amante de histórias de fantasia e música brasileira, escritor jamaicano Marlon James lança primeiro volume de uma trilogia épica inspirada por mitologias
O escritor jamaicano Marlon James em Paraty, em 2017 Foto: Monica Imbuzeiro / Agência O Globo
O escritor jamaicano Marlon James em Paraty, em 2017 Foto: Monica Imbuzeiro / Agência O Globo

SÃO PAULO — Depois de ganhar o Man Booker Prize com um romance polifônico sobre a tentativa de assassinato de Bob Marley , Marlon James revolveu se debruçar sobre suas origens africanas. Nascido e criado na Jamaica, o escritor de 50 anos desconhecia as mitologias e filosofias do continente de seus antepassados. Após estudá-las, anunciou uma trilogia que chamou de "Game of Thrones africano", deixando claro que nos livros não faltariam sexo, violência e flertes com o fantástico.

O primeiro volume, "Leopardo negro, lobo vermelho", chega nesta sexta-feira (29) às livrarias brasileiras. Quem narra a história é o Rastreador, mercenário capaz de identificar venenos e inimigos pelo cheiro e que atravessa cidades e florestas africanas à procura de um menino, herdeiro de um império. Ninguém sabe se o menino ainda está no mundo dos vivos. Em entrevista por Zoom, de Nova York, James conta o que aprendeu estudando as culturas africanas, que músicos brasileiros ouve e por que não consegue assistir a "The Crown" sem gritar com a TV.

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As primeiras frases de seu novo livro são "A criança está morta. Não há mais o que saber". Se é assim, por que o livro tem quase 800 páginas?

Não sei escrever romances curtos. Acabei de ler "O quarto de Giovanni" (de James Baldwin, 232 páginas) . Se eu fosse o autor, teria mais de duas mil páginas! Quando era criança, sempre escolhia um livro grande, porque não sabia quando ia comprar outro. Escrevo tanto porque não consigo largar mão da história. Fico perguntando: mas o que aconteceu depois? Não quero exaurir o leitor, mas que ele acabe o livro sentindo que a jornada foi longa e terminou num lugar diferente da partida. Ainda vou escrever um romance curto, mas antes tenho que terminar a trilogia. O segundo volume vai ser ainda maior.

Foi difícil escrever um livro novo depois do tremendo sucesso de "Breve história"?

Não foi. Até porque eu já estava escrevendo este livro antes de lançar "Breve história". Tenho uma foto que tirei da primeira cópia dele que recebi. Embaixo, havia um livro sobre rituais africanos. Quando publico um livro, já estou trabalhando no próximo. Isso me ajuda a não perder a concentração. E são livros bem diferentes. Admiro quem escreve só sobre um assunto, como Philip Roth , mas não consigo, sou muito disperso. É só ver minha lista na Netflix.

O que tem nela?

"Bridgerton" , porque adoro figurinos de época. Também andei vendo "O mundo sombrio de Sabrina" , porque adoro fantasia. Uma série dinamarquesa chamada "Equinox". E "The Crown", que vejo quando quero gritar com a TV. Quando lembro que foram aquelas pessoas que colonizaram e escravizaram meu povo, fico: "Ei, Rainha Elizabeth , sei que está sofrendo, mas não tanto quanto as pessoas que vocês colonizaram e escravizaram".

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Você sempre se interessou pelas tradições africanas?

Não. A colonização e a escravidão apagaram nossa história. Na Idade Média, os ingleses eram um dos povos mais atrasados do mundo, mas graças ao Rei Artur e à Távola Redonda acham que sempre foram damas e cavalheiros. Eu não tive a mitologia do meu povo como alicerce e fui atrás dela em busca de uma identidade. Comecei a estudar, e a história foi surgindo.

Cada vez mais intelectuais ocidentais se interessam pelos saberes dos povos originários e diaspóricos. O que podemos aprender com o pensamento africano?

Primeiro, a parar de pensar que a África é primitiva. Tomei muito cuidado para não escrever algo parecido com uma fantasia europeia com personagens negros. Colocar negros no castelo não resolve nada. Temos muito o que aprender com nossas ancestralidades pan-africanas. Há tribos africanas que já sabiam que a Terra era redonda quando os europeus ainda achavam que era plana. Aliás, alguns americanos acham isso ainda hoje. Os africanos estavam à frente dos europeus em temas como a homo e a transexualidade...

Em "Leopardo negro...", os gêneros e as sexualidades dos personagens são fuidos.

Sim. Muita gente ouve falar em países como Uganda e pensa em homofobia. Sempre existiu homossexualidade na África. O que é novo é a homofobia, introduzida por pastores americanos que falam besteira na TV. Em várias culturas tradicionais da África Central e Ocidental, a diversidade sexual é muito aceita. Pesquisando, descobri que há povos que reconhecem 14 gêneros diferentes. As culturas africanas já estavam prontas para pronomes neutros e gêneros fluidos há muito tempo. Os europeus é que não estavam.

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O livro se passa num mundo encantado. Como foi o contato com as espiritualidades africanas?

Para mim, a espiritualidade africana, os orixás, Ogum, Obatalá, são pilares. Espiritualidade é mais do que divindades para adorar, uma visão de mundo que, no caso da africana, é diferente do dualismo com que estamos acostumados, bom ou ruim, branco ou preto, e da ideia de que só seremos punidos ou recompensados depois da morte, no além.

Você sabe qual é o seu orixá?

Não tenho ideia, o que é uma pena.

Você ainda escreve ouvindo música?

Claro! Não sei como tem gente que escreve no silêncio. Escrevi "Leopardo negro, lobo vermelho" ouvindo muito jazz futurista e afrocêntrico: Miles Davis, Bitches Brew, John Coltrane, Thelonious Monk, Albert Ayler. Também ouvi muito Stereolab. E rock alemão: Can, Faust, Kraftwerk. Tanto no jazz quanto no rock alemão, as canções são muito longas, algumas de quase meia hora, como se os músicos estivessem num transe. Isso me ajuda a escrever, me arrebata.

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Você curte música brasileira, certo? Conhece a cena rapper queer aqui do Brasil?

Sério?! Não conheço! Estou tentando ir além da Tropicália, colecionando discos de Joyce Moreno, ouvindo Novos Baianos, Marcos Valle. Joyce tem um disco com o Naná Vasconcelos e Maurício Maestro, "Vision of Dawn", que eu penei para encontrar. Conheço pouco a música brasileira contemporânea, mas essa cena rapper queer parece incrível. Sepultura é brasileira, não? No fundo, sou roqueiro. Cresci nos anos 80. Metal era tudo.

Capa de "Leopardo negro, lobo vermelho", do escritor jamaicano Marlon James, publicado pela Intrínseca Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Leopardo negro, lobo vermelho", do escritor jamaicano Marlon James, publicado pela Intrínseca Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"Leopardo negro, lobo vermelho"

Autor: Marlon James. Tradução: André Czarnobai. Editora: Intrínseca. Páginas: 784. Preço: R$ 99,90.