Exclusivo para Assinantes
Cultura

Com carreira no mercado financeiro, Marcelo Vicintin estreia na ficção fazendo leve crítica à elite brasileira

Autor paulista analisa seus pares no romance ‘As sobras de ontem’, cuja trama contrapõe um rico decadente e uma jovem que planeja subir na vida
O escritor Marcelo Vicintin lança sua estreia na ficção Foto: Divulgação
O escritor Marcelo Vicintin lança sua estreia na ficção Foto: Divulgação

Romance de estreia de Marcelo Vicintin, “As sobras de ontem” se articula em torno da dualidade um pouco esquemática entre um rico decadente em prisão domiciliar e uma estudante de arquitetura arrivista. A história se abre com uma epígrafe do playboy fluminense Jorge Guinle dizendo que “o melhor momento das pessoas é quando elas estão subindo ou descendo. No topo, todos ficam chatos”. A frase anuncia o interesse do autor pelos movimentos da fortuna de seus personagens: enquanto o empresário Egydio Brandor Poente organiza um banquete de descida, a bloguete Maria Luiza Alvorada planeja sua fuga da classe média.

Literatura: Conheça 'Utopia', livro de Thomas More que Eduardo Suplicy enviou a Bolsonaro

Egydio é preso após envolver a empresa de navios da família em esquemas políticos rocambolescos — uma forma de fazer um corrupto dos Jardins que não remetesse à Lava-Jato. Incapaz de estruturar um parágrafo sem lançar uma referência cultural pretensamente sofisticada, esse primeiro narrador-protagonista é uma espécie de aristocrata refinado tentando encontrar glamour e sentido em uma derrocada que é menos financeira do que de imagem. Para isso, planeja um banquete para 40 convidados que considera seu próprio “baile da Ilha Fiscal”.

Já Maria Luiza é uma moça de classe média até-que-confortável traumatizada pela experiência de ter estudado em uma escola de rico de verdade e que parte dos ensinamentos da avó para suprir a carência da infância. Quando, aos 15 anos, a menina queria ganhar uma bolsa de presente, a avó bateu o pé e a levou a Paris, onde passavam os dias em lobbies de hotéis chiques analisando roupas, comportamento… O habitus dos ricos, por assim dizer.

É esse habitus que Marilu tenta em vão copiar, ao preço de furtos e mentiras, e que Egydio busca exercer mesmo no esgoto. Se ele consegue, é outra história. Confesso carecer de um contato com “ricos de berço” que me permita saber se eles realmente ficam descrevendo o processo de fabricação do cigarro que fumam e citando o ano em que determinado móvel “entrou para a família”, porém, vendo no texto isso parece caricato e estranhamente vulgar.

Dinheiro como tema

O livro ensaia algumas críticas aos ricos e seu metiê financeiro, mas ela é tão aguda e cortante que não impediu que o romance entrasse na lista de indicações culturais da Empiricus — a Empiricus Books. Deslumbramento não é exatamente o problema: ele encharca o texto de Vicintin, mas também é estruturante das histórias de Fitzgerald.

Talvez a grande limitação da obra seja uma visão autoral ingênua e a falta de coragem para tirar consequências do que ela própria apresenta. Em uma entrevista sobre o livro, o autor afirma que partiu da seguinte pergunta: por que alguém que já é rico rouba? A premissa é tão infantil que a concretização saiu até melhor do que o esperado. No fim, o resultado final de “As sobras de ontem” não é mau para um primeiro romance, porém não chega a animar.

Pandemia inspirada: Cinquenta personalidades refletem sobre a vida pós-covid em novo livro

Em seu famoso ensaio “De cortiço a cortiço”, Antonio Candido analisa como “O cortiço” (1890), de Aluísio Azevedo, se apropria do modelo de Émile Zola para criar um livro que repete fórmulas, situações e histórias inteiras, mas que ganha originalidade ao ser o primeiro romance que descreve um processo de formação de riqueza no Brasil. Antes disso, os personagens da literatura brasileira costumavam enriquecer de um jeito meio deus ex machina , através de heranças misteriosas ou no máximo de um casamento. A artificialidade dessas narrativas obviamente não se devia apenas a uma limitação dos autores: também derivava da escassez de possibilidades de ascensão relevante na sociedade brasileira.

Do século XIX para cá, as chances de enriquecer sozinho, em uma geração e no Brasil continuam desanimadoras, mas também parece haver uma recusa ou desinteresse da maioria dos autores em falar mais detidamente de dinheiro. Nesse sentido, é interessante pensar que o livro de Vicintin tenha vindo na mesma safra de “Apátridas”, de Alejandro Chacoff, que também falava de dinheiro, e também foi escrito por um estreante com histórico de mercado financeiro.

Serviço

“As sobras de ontem”

Autor: Marcelo Vicintin Editora: Companhia das Letras Páginas: 216 Preço: R$ 59,90 Cotação: Regular.