Cultura

Com orçamentos reduzidos a quase zero, músicos recorrem a auxílio emergencial e campanhas online

Sem renda de shows, artistas também criticam baixa remuneração do streaming
Integrante do Samba do Trabalhador, o cantor Nego Álvaro está vivendo com o auxílio emergencial da Caixa e algumas economias Foto: Divulgação
Integrante do Samba do Trabalhador, o cantor Nego Álvaro está vivendo com o auxílio emergencial da Caixa e algumas economias Foto: Divulgação

RIO - Desde o início da quarentena, milhares de artistas em todo o mundo têm feito lives em suas redes sociais para manter o contato com o público e facilitar a rotina de quem pode se manter em casa durante o período de isolamento social da pandemia. Mas a classe musical, que tira quase a totalidade de sua renda de shows, enfrenta uma grave crise com o fechamento indeterminado das casas de espetáculos. De um dia para o outro, os orçamentos dos músicos foram quase reduzidos a zero. Para aliviar a crise dessa e de outras classes artísticas, o Congresso vota hoje auxílio emergencial para trabalhadores da Cultura, que viram renda desaparecer .

— É muito complicado. Estou vivendo do auxílio emergencial da Caixa (de R$ 600), que eu tive a sorte de pegar na primeira remessa. — diz o cantor Nego Álvaro, integrante do Samba do Trabalhador, que há 15 anos lota o Renascença Clube às segundas-feiras. — De música, não tem nada entrando, a não ser de direito autoral, que é muito pouco. Quem não tem um trabalho de sucesso não vai receber dinheiro nenhum.

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Com a suspensão da roda, o sambista viu sua principal fonte financeira desaparecer.

— Meu orçamento caiu todo, não sobrou nada. O artista vive de show, venda de disco não dá mais dinheiro. A maioria das pessoas que conheço está passando pelo mesmo problema. Moro com minha mulher, e a bolsa de doutorado dela tem nos mantido. Mas tem gente em situação mais delicada. Chegamos a juntar cestas básicas para ajudar amigos. A classe artística está drasticamente prejudicada — desabafa.

Também expoente da nova geração do samba, João Martins tem apoiado sua mulher, Mariana, que é cozinheira, entregando refeições pelas adjacências do Catete, bairro onde mora.

— Músico não tem poupança, renda fixa, não dá para fazer pé de meia. Peguei o auxílio de R$ 200 das arrecadadoras de direitos autorais, mais os R$ 600 da Caixa, mas essas ajudas já foram embora, já pingam secando. Estamos segurando as pontas. Temos duas filhas, com mensalidades de escola integrais, os gastos são enormes. Vamos na esperança de que vá melhorar — torce Martins.

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Em ação conjunta, a União Brasileira de Compositores (UBC) e o Spotify lançaram o “Juntos pela música” (www.benfeitoria.com/juntospelamusica), um fundo de socorro aos artistas da classe. A empresa de streaming entrou com R$ 500 mil — mesmo aporte da UBC, somando R$ 1 milhão — e promete igualar cada doação feita, dobrando o valor do que for arrecadado. Para receberem o apoio, os artistas precisam se cadastrar no site da UBC e ser associados da instituição há pelo menos um ano.

— As doações são feitas em nosso site, é muito simples. Muitos compositores que dependem de músicas que tocam nos shows estão sem renda. Então, o prejuízo de direitos autorais é grande — avalia Marcelo Castello Branco, diretor-executivo da UBC.

Apesar da causa, as críticas ao valor baixo pago normalmente aos artistas pelas plataformas de streaming seguem fortes. Essa é a opinião do produtor e tecladista Arthur Braganti, que trabalha com a cantora Letrux.

— O streaming paga uma miséria. Os independentes vivem de show, e a quarentena nos afeta muito. Num momento como esse, o Spotify precisa proteger mesmo os pequenos, é uma maneira de compensar a divisão de ganhos. Para o autoral já é quase nada. Para quem ganha direito conexo, é menor ainda — comenta.

O tecladista e produtor Arthur Braganti critica a baixa remuneração do streaming Foto: ANETTE CARLA ALENCAR / Divulgação
O tecladista e produtor Arthur Braganti critica a baixa remuneração do streaming Foto: ANETTE CARLA ALENCAR / Divulgação

Presidente da Casa do Choro — que perdeu o patrocínio da Petrobras em 2019 — e da Escola Portátil de Música, a cavaquinista Luciana Rabello conta que os espaços precisaram realizar uma readaptação salarial para enfrentar este momento:

— Acho que esta é a mais sofrida das crises. Empregamos 40 pessoas. Para viabilizar a volta da Casa e da Escola, tivemos que fazer uma redução salarial de 35%, mas sem nenhuma demissão. Nossos professores estão trabalhando o dobro de casa, dando aulas on-line. Todos têm muita paixão pelo que fazem. Mas tenho colegas passando necessidade, pegando empréstimo no banco, o que sempre é uma temeridade. O choro atravessou outras guerras, pandemias, e segue resistindo depois de 150 anos como uma música popular ativa.

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Outro importante nome do cavaquinho brasileiro, Henrique Cazes afirma que sua estabilidade hoje se deu pela decisão de retomar a vida acadêmica em 2009, quando completou 50 anos.

— Da minha geração, muitos músicos não têm curso de graduação, porque a chamada do mercado era muito tentadora, e as pessoas viravam profissionais muito novas. Hoje vejo muitos amigos passando situações dificílimas, muitos vivendo de salário mínimo, um servicinho qualquer, uma coisa muito triste. Se alguma coisa pode salvar o Rio de um lugar que prometeu e não aconteceu, essa coisa é a música. Temos a história, a tradição, o samba, o choro. Mas o poder público precisa ajudar — conta Cazes, que hoje implementa o primeiro bacharelado de cavaquinho do mundo na UFRJ.

No campo da música clássica, que vem sofrendo com severas depressões econômicas há anos, o futuro é incerto. Na temporada em que completa 80 anos, a Orquestra Sinfônica Brasileira precisou parar e reavaliar os caminhos para o futuro.

— Com o Crivella não houve apoio financeiro algum. Como a OSB não é amparada pelo poder público, não corremos o risco de ter o orçamento cortado neste ano. Então, não tivemos reduções ou cortes. Mas o próximo ano é incerto, já que dependemos das empresas privadas por meio da Lei Rouanet — diz Ana Flavia Cabral Souza Leite, diretora executiva da OSB.

No Teatro Municipal, os corpos artísticos seguem sem cortes, mas o planejamento para uma eventual volta da temporada irá precisar de reajustes.

— Tínhamos previsto a chegada de novos patrocinadores e a reconquista da marca neste ano. É um momento muito complicado, de contingenciamento,  mas agora o foco é na saúde — afirma o diretor artístico André Heller-Lopes. — Conseguimos manter os salários e orçamento, graças a Deus, mas vamos ter que cortar na carne, readaptar os títulos, fazer espetáculos mais baratos. Vamos precisar nos reinventar.

Cia. Bachiana Brasileira sofre com falta de apoio e patrocinadores Foto: Divulgação / Fly Studio Bachiana
Cia. Bachiana Brasileira sofre com falta de apoio e patrocinadores Foto: Divulgação / Fly Studio Bachiana

Já a Cia. Bachiana Brasileira passa por uma situação mais delicada, com perda de apoio e patrocinadores ainda mais acentuada após o início da pandemia.

— Em 2016, houve a decretação oficial de falência da cidade, o que afetou muito a companhia. Nossas ações e projetos basicamente acabaram. Entramos em 2020 com grandes esperanças, mas aí veio a coisa avassaladora da Covid. A situação dos músicos, de forma geral, está muito fragilizada. Há casos de pessoas com crises de ansiedade, com depressão. O isolamento é importante, mas o sol também. O confinamento domiciliar está provocando doenças, pânico, depressão. As atividades que não entram no grande mercado precisam ser protegidas pelo Estado. Mas já passamos por outras crises, não vamos cair — garante o maestro Ricardo Rocha.