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Cultura

Como a era digital fez do funk um fenômeno, com MCs protagonistas de videoclipes que somam milhões de visualizações

Gênero soube surfar na consolidação do YouTube no Brasil, com canais que mostram ao Brasil a cultura periférica feita por artistas de comunidades e que mudaram a imagem do batidão
MC Kevin era seguido por milhões nas redes sociais e tinha números impressionantes no YouTube Foto: Divulgação
MC Kevin era seguido por milhões nas redes sociais e tinha números impressionantes no YouTube Foto: Divulgação

Se o funk nasceu na periferia do Rio, é São Paulo que tem produzido, ultimamente, alguns dos maiores fenômenos do gênero musical, como MC Kevin, que morreu no último domingo, Paulin da Capital e MC Lipi — os dois últimos tendo alcançado, em 2020, o topo do chart (ranking de músicas mais tocadas) do YouTube Brasil. Mas essa roubada de cena da Terra da Garoa começou a se desenhar lá atrás, numa entressafra carioca que durou anos, com bailes diminuindo nas favelas com a chegada das UPPs. Foi quando os MCs de São Paulo cuidaram de providenciar as novidades nas pistas.

'Passado & presente': Álbum póstumo de MC Kevin é uma autobiografia trap funk cantada por uma voz que se calou cedo

Tudo desponta com o “funk ostentação”, um subgênero que teve seu auge em 2014. MC Guimê foi um dos pioneiros a cantar o estilo, baseado na tiração de onda ao listar roupas de marca, carros, bebidas caras, mulheres, joias, toda uma realidade bem distante da pobreza. Era um imaginário que sempre existiu nas quebradas paulistas e começava a ser materializado em videoclipes que pegavam carona na popularização do YouTube Brasil, que se consolidou por aqui em 2013.

Aí entra uma peça-chave nessa história: Konrad Dantas, o KondZilla, diretor de criação, produtor e empresário brasileiro que criou um dos maiores canais de música do mundo e hoje é dono de um império que inclui portal, gravadora e empresa de licenciamento de marca. KondZilla passou a colocar a cultura da periferia na vitrine para todos verem, gerando uma audiência que se desdobrava em venda de shows para artistas. Outras produtoras surgiram então, como a GR6 Explode (que lançou MC Kevin) e, mais recentemente, a Funk Love.

— KondZilla retratou o funkeiro de outro jeito, e esse passou a ser um dos principais diferenciais entre Rio e São Paulo. Até então, a imagem do funk no Rio estava associada a arrastões e bailes funk invadidos pela polícia — analisa o pesquisador musical Renato Martins, ex-editor chefe do portal “KondZilla”, que trabalhou na produção do documentário “Funk ostentação ” e escreveu sobre o gênero musical na “Vice Brasil”. — Os caras em São Paulo começaram a fazer dinheiro com o YouTube, que trouxe para o funk uma grana que não existia.

A injeção da grana digital mudou completamente o cenário. As gravadoras passaram a fechar contrato com canais específicos, como conta o especialista em marketing musical André Izidro, ex-CEO da KondZilla e hoje na agência Atabaque. Segundo ele, o que a KondZilla e a transformação digital fizeram foi inverter a pirâmide:

— O KondZilla conseguiu enxergar o desenvolvimento do negócio baseado na plataforma de funk trazendo o jovem de favela como protagonista desse ecossistema, que tem uma audiência grande e consome.

No Rio, falta de apoio

Articulador nacional do movimento funk e fundador dos coletivos Funk no Poder e Favela no Poder, Bruno Ramos lembra que, diferentemente de outros movimentos da periferia como o samba e o hip-hop, nascidos num mundo analógico, o funk mais recente se beneficiou da era digital e soube surfar nela:

— Com isso, além de o movimento se conectar com o jovem da periferia, também passa a ser conhecido e consumido pelo jovem da classe média alta. Se outros movimentos musicais dependeram do jabá no rádio e da grande mídia, a era digital dá autonomia, emancipou o funk.

O pioneiro funk carioca, apesar de ainda ditar tendências estéticas — como o boom acelerado do 150 BPM, em 2018, que transformou em estrelas nomes como Kevin o Chris e Rennan da Penha, com seu Baile da Gaiola —, acaba não tendo o mesmo senso de coletividade.

— Tem uma grande diferença aqui no Rio, porque os artistas começam do zero. Não tem empresário, uma produtora para ajudar, como tem em São Paulo — opina a DJ e produtora Iasmin Turbininha, que ousou mais ainda ao levar o funk carioca ao 170 BPM. — Fiz um canal no YouTube em 2011 sem saber usar, fui aprendendo por tutorial em lan house. E ainda é assim para a maioria. O funk do Rio precisa de apoio, união. Meu sonho é abrir minha produtora, ajudar os MCs e DJs que estão começando.

Conhecido também como “ritmo louco” ou “putaria acelerada”, ele pegou a cadência padrão dos hipersexualizados raps cariocas — 130 batidas por minuto — e subiu 20 batidas, a fim de atrair um público mais jovem, que já nasceu na velocidade da luz da internet.
Conhecido também como “ritmo louco” ou “putaria acelerada”, ele pegou a cadência padrão dos hipersexualizados raps cariocas — 130 batidas por minuto — e subiu 20 batidas, a fim de atrair um público mais jovem, que já nasceu na velocidade da luz da internet.

Cantores influenciadores

Um fato que precisa ser levado em consideração no cenário atual do funk é o advento das redes sociais, que possibilitou a criação de muitos nichos e bolhas robustas. Transformaram funkeiros, assim como os demais artistas, em influenciadores com milhares de seguidores.

— Considero a presença forte nas redes parte do trabalho. Elas podem dar uma grande visibilidade e fazer com que as pessoas tenham mais interesse no artista, e isso pode gerar mais oportunidades, pra cantar no baile ou pra fazer publicidade no Instagram — opina Ludmilla, com quase 24 milhões de seguidores no Instagram.

Muitas vezes, o artista tem mais fãs nas redes do que nas plataformas de música, como Spotify, por exemplo, o que faz dele um fenômeno mesmo que grande parte da população não tenha ideia de quem ele seja. Caso de MC Kevin, que somava mais de 10 milhões de seguidores no Instagram apesar de ser desconhecido para muita gente.

— O Kevin era um cara superconhecido na cena funk de São Paulo, e ele soube aproveitar essas ondas de internet. Só que que não é algo pelo Brasil todo, é regional, o que acaba gerando essa distorção — explica o especialista em marketing musical André Izidro.

Esse abismo entre milhões que amam e outros que sequer ouviram falar se reflete até nas agências de publicidade, que se assustam com números de audiência na casa dos bilhões.

— Funkeiro sempre teve uma cultura digital diferente da classe média. Enquanto ela tem assinatura do Spotify, o funk ouve música no YouTube. O sucesso na periferia é medido pelo YouTube — diz o pesquisador musical Renato Martins. — Já esse universo de influencer é uma bolha que acontece em todas as redes. DJ Rogerinho do Querô tem um milhão de seguidores, o MC Negão da BL, 3 milhões. Você já ouviu falar deles?

MC Kevin postava cotidiano de viagens nas redes sociais Foto: Reprodução
MC Kevin postava cotidiano de viagens nas redes sociais Foto: Reprodução

Por mais que o funk tenha sido conectado desde a era do Orkut, em que encontrou espaço para divulgação, o YouTube foi o grande responsável pelo tamanho que o gênero musical tem hoje. Todos concordam que a polêmica é um ingrediente que ajuda não só a construir como a alavancar a audiência nas redes, mas o boom dos paulistas MC Kevin ou MC Livinho, dois recentes sucessos, deve-se, para Renato, ao fato do que eles representam o espírito do jovem que quer ascender na vida:

— Eles trazem esse símbolo do sucesso, da beleza masculina, as tatuagens, sexualidade. Quando a gente olha para ícones do rap americano, de onde o funk surge, eles não estão muitos distantes. Mas hoje há a possibilidade de eles se representarem como os próprios ídolos. O Kevin não está muito longe do 50 Cent em sua melhor fase.