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Cultura

Como a História lida com as fake news? Aumento do negacionismo vira foco de estudos

Questionamento de fatos históricos, potencializado por notícias falsas, é fruto de estratégia de poder e crise da ciência
Ao contrário do que imagina o senso comum, negacionismo não é só negar um fato histórico, mas questioná-lo de diferentes maneiras e com diversos propósitos Foto: André Mello
Ao contrário do que imagina o senso comum, negacionismo não é só negar um fato histórico, mas questioná-lo de diferentes maneiras e com diversos propósitos Foto: André Mello

Diferentemente do que imagina o senso comum, negacionismo não é só afirmar que fatos históricos, como o Holocausto ou a ditadura civil-militar no Brasil, não aconteceram, mas questioná-los de diversas formas e com diferentes objetivos. O termo vem do francês “négationnisme” e surgiu no contexto do Tribunal de Nuremberg, na Alemanha, para caracterizar discursos que negavam o extermínio de judeus. Esses discursos não se limitavam aos nazistas que sobreviveram à guerra, mas também eram defendidos por historiadores, como o francês Robert Faurisson (1929-2018), que contestou até a autenticidade dos diários de Anne Frank .

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No último ano, diante da intensa disseminação de fake news e de declarações que desprezam a ferocidade e letalidade da Covid-19, descrita como “gripezinha” pelo presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, o negacionismo tem sido cada vez mais debatido pelos historiadores .

— O negacionismo pode negar a realidade ou se revestir de outras estratégias narrativas, como a legitimação e justificativa de determinados fatos históricos. Alguns negacionistas não negam os campos de concentração, mas afirmam que os judeus morreram de doenças e não nas câmaras de gás — explica Caroline Bauer, historiadora do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (LUPPA-UFRGS).

'Crise da ciência'

Bauer entende o negacionismo como “estratégia de regimes genocidas”:

— Fez parte da própria estrutura da ditadura brasileira, que divulgava que os opositores haviam morrido por suicídio ou em confrontos, quando haviam sido assassinados.

Patrícia Valim, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diferencia o negacionista profissional do inocente. O profissional faz da disseminação de mentiras seu meio de vida, como Faurisson e o gaúcho Siegfried Ellwanger Castan (1928-2010), autor de livros que negavam o Holocausto e condenado pelo Supremo Tribunal Federal por incitação ao racismo.

No Brasil, não há legislação específica para punir o negacionismo. Já o negacionista inocente seria o “tio do zap”, que contesta os crimes da ditadura porque não conhece ninguém que tenha sido torturado.

Valim ainda explica que o negacionismo é uma “governabilidade minuciosamente elaborada”, ou seja, uma condição para o exercício de determinadas formas de poder, e que muitas vezes é reflexo de uma “crise da ciência”.

— A ciência entra em crise quando não é representativa e não dá conta da diversidade populacional. Setores que não se veem representados na comunidade científica buscam respostas em outros lugares — afirma Valim que, juntamente com Alexandre Avelar, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), prepara um dossiê sobre negacionismo para a “Revista Brasileira de História”. — Ciência é construção de consensos, o que também depende de representatividade. Rejeitar a centralidade da luta antirracista, por exemplo, é negacionismo ético.

Entre erro e mentira, a intenção

Diferentes interpretações históricas podem ser igualmente válidas. Inclusive, nas últimas décadas, cresceu a demanda por historiografias menos eurocêntricas . Interpretações errôneas podem resultar de equívocos na análise das fontes ou falsificação deliberada, estratégia usada pelo negacionismo e pelas fake news, que empreendem revisões ideológicas do passado.

— Até a mentira pode ser interpretada por historiadores. A pluralidade e a refutação de diferentes interpretações é parte do debate. Já dizia o filósofo Karl Popper que uma sentença irrefutável não é científica — lembra o historiador italiano Carlo Ginzburg.

O que separa o erro da mentira, mostram os pesquisadores, é a intenção. O mentiroso, seja ele um negacionista profissional ou um disseminador de fake news, geralmente conhece a verdade. Negacionistas dizem propagar não uma mera interpretação histórica, mas a verdadeira História. Mas existe verdade histórica? Robert Darnton , um dos mais influentes historiadores em atividade, autor de livros como “Censores em ação”, afirma que sim, embora seja uma “verdade com V minúsculo”, que não se confunde com a opinião ou a propaganda ideológica.

— Como profissionais, desenvolvemos regras para interpretar o passado e nos aproximarmos de uma verdade histórica. Vamos às fontes e mostramos como são construídas as evidências — diz Darnton, que prepara um livro sobre como informações falsas atiçaram a Revolução Francesa.

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Segundo Fernando Nicolazzi, também pesquisador do LUPPA-UFRGS, revisões ideológicas do passado aparecem, por exemplo, em obras que exaltam a monarquia e minimizam a escravidão.

— Usos ideológicos do passado para fins políticos se caracterizam pela higienização da História — diz. — A escravidão vira só uma mancha moral, um mero detalhe resolvido pela Princesa Isabel, e não como um processo estruturante da sociedade brasileira. O revisionismo ideológico vende uma história linear e desprovida de conflitos.

O historiador argentino Federico Finchelstein afirma que a mitologização do passado é típica de políticos autoritários que mentem até que a realidade se altere.

— Por isso é importante defender a liberdade de expressão, o jornalismo independente e a história científica. Muitos vão continuar acreditando em mentiras, mas eles não são a maioria — afirma ele.