Veja previsões em uma história em quadrinhos, uma crônica, um roteiro e dois contos Foto: Arte / Arte

Como será o amanhã? Cinco autores imaginam cenários para ano que começa hoje

Veja previsões em uma história em quadrinhos, uma crônica, um roteiro e dois contos

por O Globo

Asas para Esmeralda
por Cristiane Sobral *

Esmeralda não sabia ao certo há quanto tempo vivia nas ruas. Dos pais, poucas lembranças. Tinha sonhos, queria voar. Precisava de asas, no mínimo. A fome era companheira de infância, doía e custava a matar, mas a ignorância não. Quando aprendeu a ler com um professor desiludido que vivia nas ruas, escolheu as asas-livros para traçar o seu destino. Lia oito, doze horas por dia. Fazendo um poema por mês, podia declamar nas ruas e comer por dois, três dias até cair novamente na incerteza.

Em um livro médico, leu: poderia aguentar uns vinte e cinco dias. Viu amigos ficando cegos, outros perdendo os movimentos das pernas... Lutava contra a dificuldade de criar com a barriga vazia. Era difícil escrever bons poemas, impactar os passantes a ponto de deixarem algo em seu chapéu velho colocado ao lado dos seus pés descalços enquanto declamava. Com um texto ruim, nada de moedas. Enfrentava o desprezo, a arrogância, o deboche. Algumas pessoas sorriam, batiam palmas, isso fazia tudo valer a pena.

Em uma lata de lixo, achou um vestido que passou a ser o figurino das apresentações. Economizou trocados e, tempos depois, comprou tábuas de madeira, fez a pintura e construiu o seu lar no alto de um morro. A vista era linda. Pela primeira vez tinha o seu próprio banheiro. Tinha plantas e um cachorro fiel, o Sócrates. Dormia no chão.

Dezembro era o maior desafio. As pessoas corriam, angustiadas, queriam comprar! Pareciam tão desalmadas! Os dias aumentavam a fome, terrível vilã. Em vinte dias as pernas fraquejavam. Comeu o restinho de pão com o Sócrates. Saiu com o poema “O que esperar de 2018”, a última esperança. Parou na praça diante da igreja matriz. Interpretou o poema. As pessoas chegaram, ouviram, choraram. Sorriram. Findaram abraçados, sonhando outros dias.

Ao seu lado estava uma senhora negra, pele preta e cabelos crespos grisalhos, com uma expressão de bondade. Acreditava que, se Deus existisse, seria uma mulher preta. No outro dia, ao acordar, seus rascunhos não estavam ali, mas havia um bilhete e um número de telefone: “Sou editora e quero publicar os seus escritos”. Ao lado do bilhete, um par de sapatos, um relógio, alimentos, garrafas de água, sabão, papel higiênico. Faltavam minutos para 2018. Chamou a vizinha, comeram e beberam juntas. Revelou a publicação do primeiro livro. Abraçaram-se, felizes, esperançosas. Esmeralda conseguiu as suas asas, agora poderia voar.

* Cristiane Sobral é atriz e autora de cinco livros, incluindo “Terra negra” (2017)

Sol no mundo da lua
por Dadá Coelho *

359 graus ao redor do sol, com um caminhão de fogareiro aceso no juízo, Solange só pensa no marasmo dessa semana imprensada entre o Natal e o Ano-Novo. Como tradição, ela continua mergulhada no abismo de tomar uma decisão entre o que vestir no Ano-Novo e as dívidas do Natal. Solange, ou Sol, como ela prefere, é uma publicitária deveras foda, mais aplaudida que o poente do Arpoador, conhecida internacionalmente naquele quarteirão do Baixo Leblon. Inteligente, afetuosa, trabalhadeira, atleta, um poder verbal extraordinário, simpática com ar de bondade. E linda e nua no alto dos seus 39 anos. Tem uma filha, a pequena 14. Mãe solteira não! Porque mãe não é estado civil. Sol nunca leu Freud, mas para esse finado há duas formas de buscar a felicidade: evitar o desprazer ou experimentar fortes sensações de prazer. Em pleno 26 de dezembro resolveu largar o Face e ir pra rua. “Nada pode dar errado andando de bicicleta, né?” Ou pode, se você estiver na ciclovia Tim Maia, no Rio de Janeiro. Deu. Um atropelamento deixou seu joelho lapeado e ela sabia que problema no joelho, barulho de Kombi e cecê não têm no mundo o que dê jeito. Daí presta atenção no causador de sua dor, Glauco — estatelado no asfalto. Tão bonitinho... “Não! Não vou me apaixonar. Não vou!” Glauco também gostou de Sol e começou a se engraçar com ela. “Tu és muito saliente. Eu não gosto de homem casado.” E ele: “Nem eu.” Caíram na risada e na real. Sol se sentiu numa canoa... FURADA, né? Bem casado é uma sobremesa indigesta. Mas Glauco insistiu nas mensagens via zap: “musa única que une e pune a poesia. Quero te escrever como quem trepa”. Havia algo na escrita dele que dava a Sol outro corpo. Ela ardia, mas Glauco tinha convicções firmes pra ser um tanto fascista e 100% machista! Apesar de “mulher direita”, Sol não era disciplinada o suficiente para ser de esquerda e tampouco pra ser de centro, oportunista. Sol era uma anarquista inofensiva. Mas convenhamos, nenhuma mulher prenhe de uma ilusão amorosa é inofensiva numa noite de Ano-Novo.

Chafurdou no perfil de Glauco no Face e teve uma síncope! O homem nutria uma paixão por Trump. Era fotógrafo do Crivella. E ainda lia os versos de Michel Temer. Plateia da Luciana Gimenez! Glauco era a prova de que 2017 era uma peça do Gerald Thomas filmada por Glauber Rocha e editada por Lars Von Trier de mau humor, se é que o leitor me entende. Que filme ruim era aquele em que os atores, recém-formados na escola de arte dramática do Fiuk, falavam com a voz da Pabllo Vittar? O jeito foi excluir ele do feed do coração e voltar pra Internet. Mas dessa vez para colocar a bike na OLX e desapegar de vez dessa coisa perigosa que são esses fakes da vida real. Sim, porque Glauco era um perfil tão falso quanto uma nota de bitcoin.

Decidiu: não quer mais saber do amor. Bom mesmo é procurar um tutorial de meditação e ficar prana . “Mas o que é isso aqui?” Uma cutucada no face? “Hum, mas até que é bonitinho...” Ela retribui, mas fecha o Face em seguida. Vai que ela descobre que ele também é de família e participa do MBL! Abre o vinho e respira: “Foi só uma, Sol.”

Uma coisa é certa. Sol já sabe que em 2018 não ficará em prisão domiciliar, ainda que virtual. Na pior das hipóteses, ela recebe um like do Gilmar Mendes.

* Dadá Coelho é atriz, roteirista e irmã de Emmemeirejanes.

Tristíssimo ano novo
por André Sant’Anna *

2018 vai ser péssimo, óbvio, porque, em 2018, todo mundo, em toda parte, vai estar pensando em dinheiro, tentando arrumar uns jeitos, sejam lá eles quais forem, de fazer um dinheiro, de retomar o crescimento econômico, de estimular o consumo, para que o mercado aumente a lucratividade das empresas nacionais e multinacionais, para que as grandes empresas nacionais e multinacionais possam gerar mais empregos para os trabalhadores, para o povo, para essa gente que só serve para trabalhar e comprar coisas, para que o povo ganhe dinheiro para comprar cada vez mais croc-chips-bits-burgers, aquecendo assim cada vez mais o mercado, garantindo ainda mais lucratividade às grandes empresas nacionais e multinacionais, que vão gerar mais empregos para o povo trabalhador consumir gordura de croc-chips-bit-burgers e aquecer o mercado financeiro, que investe na lucratividade das empresas nacionais e multinacionais que geram empregos para o povo e vendem croc-chips-bits-burgers garantindo o crescimento econômico, que é a coisa que todo mundo acha que é a coisa mais importante que existe.

2018, óbvio, vai ser péssimo para os brasileiros, que vão piorar em tudo, vão ser pessoas ainda piores, mais doentes do que já estão, mais ignorantes do que já são, se preocupando com dinheiro, a retomada do crescimento, a retomada do consumo de croc-chips-bits-burgers, os brasileiros por aí, nas praias do Dorival Caymmi, do Simonal, da Gal, no carnaval, gastando dinheiro, na retomada do crescimento, emporcalhando tudo, bebendo cerveja que legal, tropical, as praias do Dorival Caymmi todas cobertas por guarda-sóis amarelos, esgoto no rio, no mar, naquela falta básica de saneamento básico, de educação, de higiene, de conhecimento básico sobre o básico, emporcalhando tudo.

Em 2018, o brasileiro vai morrer todo ensanguentado numa estrada brasileira, a indústria automobilística retomando seu crescimento e gerando empregos, com alto desempenho, e umas crianças vão ser baleadas no meio da aula de História, matéria que ainda vai sair do currículo escolar, fazendo com que os filhos dos trabalhadores brasileiros se tornem ainda mais ignorantes do que já são, na guerra contra as drogas, enquanto os velhos, cada vez mais velhos, vão quebrar a economia brasileira, todo o nosso sistema previdenciário, insistindo em permanecer vivos, e cada vez mais os brasileiros vão morrer fedendo na fila de um desses hospitais, dos quais uns desses governadores nacionais roubou dinheiro, das criancinhas morrendo lá, para ficar lá em Paris, fazendo festinha.

Em 2018, essa porcaria de ano aí, óbvio, essa porcaria toda aqui vai ficar ainda mais poluída, superaquecida, ensanguentada, fedida, ignorante, as pessoas se explodindo por aí, porque o dinheiro não está dando pra todo mundo, os croc-chips-bits-burgers não estão dando pra todo mundo, os brasileiros não compreendem os fatos e as eleições do ano que vem não vão mudar em nada essa porcaria toda, óbvio.

* André Sant’Anna é escritor, autor de “O paraíso é bem bacana” (2006) e “Sexo e amizade” (2007)

Em 2018 finalmente lutaremos
por Raphael Salimena *

Raphael Salimena é quadrinista e cartunista, conhecido pelo blog Linha do Trem
Raphael Salimena é quadrinista e cartunista,
conhecido pelo blog Linha do Trem

* Raphael Salimena é quadrinista e cartunista, conhecido pelo blog Linha do Trem

Feliz Ano-Novo
por L.G. Bayão *

* L.G. Bayão é roteirista e trabalhou em filmes como "Heleno" (2011) e 'Ponte aérea" (2015)