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Cultura história

'Comunista inofensivo', Hobsbawm foi vigiado pelo serviço secreto britânico desde a Segunda Guerra, diz biógrafo

'Eric Hobsbawm: uma vida na história', de Richard J. Evans, mostra como o intelectual marxista não abandonou o Partido Comunista apesar das muitas divergências
Eric Hobsbawm com a gata Ticlia, na década de 1970: o historiador marxista se identificava com os pobres, os excluídos e os revolucionários Foto: Acervo de Marlene Hobsbawm / Divulgação
Eric Hobsbawm com a gata Ticlia, na década de 1970: o historiador marxista se identificava com os pobres, os excluídos e os revolucionários Foto: Acervo de Marlene Hobsbawm / Divulgação

Nascido numa família judaica em Alexandria, no Egito, Eric Hobsbawm (1917-2012) seguiu ainda criança para a Áustria e depois para a Alemanha, onde assistiu à ascensão do nazismo e se juntou às fileiras comunistas. Em 1933, após a morte dos pais, mudou-se com os tios para a Inglaterra. Sempre fiel à bandeira vermelha, destacou-se como um dos historiadores mais influentes do “breve século XX”, expressão consagrada por ele. O pensador marxista publicou mais de duas dezenas de livros, entre eles “A era dos extremos”, best-seller no Brasil, onde seus títulos venderam quase um milhão de cópias — Hobsbawm participou em 2003 da primeira Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) , onde foi aplaudido ao caminhar pelas ruas da cidade. Em sua autobiografia, “Tempos interessantes”, lançada no ano anterior, revelava seu entusiasmo pelo PT.

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É o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aliás, quem assina a apresentação de “Eric Hobsbawm: uma vida na História”, biografia escrita pelo também historiador britânico Richard J. Evans e recém-lançada no Brasil. Evans mergulhou nos arquivos deixados por Hobsbawm (nos quais encontrou até poemas da juventude em alemão) e na farta documentação produzida pelo serviço secreto britânico. O historiador marxista começou a ser vigiado pelo MI5 enquanto fazia tarefas burocráticas para o Exército britânico durante a Segunda Guerra (1939-1945).

Hobsbawm foi membro do Partido Comunista da Grã-Bretanha até sua extinção, em 1991. Ao contrário de outros intelectuais do país, porém, ele não rompeu com o Partido após a revelação dos crimes de Stálin e da invasão soviética à Hungria, em 1956. A vida toda ele divergiu da linha oficial do comunismo britânico. Os arquivos dos MI5 pesquisados por Evans revelam que as discussões com a direção do Partido eram tão frequentes que Hobsbawm quase acabou expulso.

Família substituta

Em entrevista ao GLOBO, Evans descreve Hobsbawm como um “comunista com C minúsculo” e afirma que, apesar de “politicamente inofensivo”, foi tão vigiado porque, aos olhos do MI5, não era “inglês o suficiente” por sua ascendência austríaca e “formação cosmopolita”. A biografia tenta explicar por que, apesar das discordâncias políticas, ele nunca deixou as fileiras do Partido. O historiador gostava de jazz (e escrevia críticas musicais sob o pseudônimo de Francis Newton), por exemplo, quando os comunistas ainda qualificavam o gênero como “alienado”. Também nunca foi um marxista “dogmático” ou “stalinista”, como lembra o biógrafo.

— Ele integrou o comunismo à sua personalidade. Nos diários de adolescência, ele escreveu que ingressou no Partido porque era pobre e, para os comunistas, a pobreza era virtude — diz Evans, estudioso da História alemã e autor de uma trilogia sobre o Terceiro Reich. — Após perder os pais, ele encontrou no comunismo uma família substituta. Sair dela exigiria uma força emocional da qual ele não era capaz, mesmo depois de suas tentativas de democratizar o Partido e fazê-lo se arrepender do apoio à invasão à Hungria terem fracassado.

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A vida privada do historiador se confundia com suas bandeiras políticas e interesses profissionais, afirma o biógrafo. Nos anos 1950, enquanto se debruçava sobre a história dos marginalizados, Hobsbawm vivia no meio deles nos bairros boêmios de Londres, e chegou a morar com uma prostituta.

Vida com muito sexo

Aliás, o que mais impressionou Evans ao investigar a vida do historiador foi “a quantidade de sexo”. Hobsbawm, porém, não enxergava vínculos entre permissividade sexual e revolução política, como sonhava a geração de 1968. Segundo ele, a maioria das revoluções foi puritana em sua abordagem da sexualidade.

Evans lembra que os espiões de Sua Majestade não desgrudaram de Hobsbawm nem quando ele veio ao Brasil, em 1962, pesquisar os “rebeldes primitivos” representados pelas Ligas Camponesas. “O potencial de organização camponesa é imenso”, anotou o pensador, impressionado com a “pobreza desesperadora” que encontrou. “Os habitantes parecem não ter feito uma refeição decente há dez gerações: raquíticos, nanicos e doentes.”

Parte do material foi usada depois em “Bandidos”, livro recentemente excluído da biblioteca da Fundação Palmares , que o descreveu como “uma obra que define o bandido (...) como um ser que se rebela ‘contra a injustiça’” e justifica “a criminalidade como ‘arma revolucionária’”. “A frase central do livro é esta: ‘Banditismo é liberdade’”, afirma o relatório divulgado pela instituição.

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O biógrafo afirma ser exagero chamar de “revolucionário” o banditismo descrito no livro, publicado em 1969. No entanto, reconhece que Hobsbawm simpatizava com os bandoleiros.

— Os bandidos são “rebeldes primitivos” das comunidades rurais que roubavam dos ricos para dar aos pobres, mas faltavam a eles a ideologia e a organização necessárias para transformar a rebelião numa revolução — explica o historiador. — Hobsbawm romantiza os bandidos e minimiza as táticas de intimidação usadas por eles para arrancar o que queriam de suas comunidades. Mas é parte do charme do livro, que gerou um debate que se estende até hoje.

Apesar disso, Evans comenta que há “alguma lógica” no expurgo da Palmares :

— Hobsbawm se identificava com os pobres, os excluídos e os revolucionários. Quanto mais eles influenciarem leitores, mais preocupada a extrema-direita brasileira deve ficar.

Capa da biografia "Eric Hobsbawm: uma vida na história", de Richard J. Evans, publicada pelo selo Crítica, da Planeta Foto: Reprodução / Divulgação
Capa da biografia "Eric Hobsbawm: uma vida na história", de Richard J. Evans, publicada pelo selo Crítica, da Planeta Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“Eric Hobsbawm: uma vida na História”

Autor: Richard J. Evans. Editora: Crítica. Tradução: Claudio Carina. Páginas : 728. Preço : R$ 159,90.