Exclusivo para Assinantes
Cultura

Contos de Marcelo Moutinho cruzam o Rio entre dores e afetos

Em 'Rua de dentro', carioca percorre encruzilhadas e contradições da cidade
Marcelo Moutinho, autor de "Rua de dentro" Foto: Leo Aversa / Divugação
Marcelo Moutinho, autor de "Rua de dentro" Foto: Leo Aversa / Divugação

Carioca, nascido em Madureira, imperiano de raiz — a tradicional Escola de Samba Império Serrano também é do bairro —, o jornalista e escritor Marcelo Moutinho atravessa o Rio de Janeiro com arrebatamento na vida e na literatura.

Difícil, em tempos atuais, declarar-se um amante do Rio: água contaminada, violência, desmandos, desprezo dos dirigentes por tudo que agrada aos cariocas. Situações que os habitantes podem contribuir para modificar, afinal as eleições estão aí.

"Ferrugem": em livro de contos, Moutinho dá voz a personagens do Rio

Como mesmo assim o escritor é um amante da cidade, trata de outras dores menos conjunturais. É da desigualdade que vai além dos abismos entre o morro e asfalto, do cotidiano polarizado entre as famílias, das dificuldades em cruzar a cidade, da intolerância diante de opções do uso do corpo, do gênero, do sexo, que “A rua de dentro” trata. A intolerância religiosa, a exclusão social ou familiar, a dificuldade de ser jovem entre grupos conservadores, o cotidiano de gays, lésbicas, LGBTS+ fazem com que momentos que deveriam ser simples, como uma viagem de táxi pela cidade ou um jantar em família, possam se transformar em conflito.

Os contos se iniciam pelo sintomático “Purpurina” com a experiência de exclusão do jovem que se transforma na trans e vai circular pela Lapa, Centro, entornos da Glória, descobrindo a solidariedade das companheiras até o reconhecimento emocionado do pai diante da carteira de advogada de Camile, que nasceu Gustavo.

'Na dobra do dia': crônicas registram mudanças de Madureira, Lapa e Centro

Em “Um dia qualquer”, um homem comum atravessa o centro carregando uma dor profunda e espalha o sofrimento pelas ruas: “Buzina, bordões de venda, o apito do guarda de trânsito. Um cachorro lambe a quentinha que o mendigo acabou de comer, refestela-se com os restos de feijão, enquanto seu dono dorme sobre duas folhas de jornal. A normalidade, por alguns segundos, se revela insuportável”.

São travessias diversas até chegar a “Vanessa”, comovente numa quase secura: a jovem de Lins de Vasconcelos que sonha estudar odontologia e abrir um consultório no Méier, mas que do colégio estadual à casa passa por uma troca de tiros e, infelizmente...

O escritor Marcelo Moutinho Foto: Leo Aversa / Divulgação
O escritor Marcelo Moutinho Foto: Leo Aversa / Divulgação

Fronteiras fluidas

Atenção, Moutinho não fala pelos outros, mas ficcionaliza as histórias que nos mostra, chegando a usar o discurso em primeira pessoa quando essa pessoalidade dá impulso à narrativa.

Na praça sob o viaduto, no restaurante a quilo que lembra os aposentados de Copacabana, no irritante engarrafamento do centro, no estádio de futebol, nas casas de subúrbio ou de comunidades, os contos vão atravessando o que Bruno Carvalho, jovem professor de Harvard e estudioso de cultura urbana, apontou em seu recente “Cidade porosa: dois séculos de história cultural do Rio de Janeiro” . Porosidade, para ele “tem a ver com trânsito, circulação, fronteiras fluidas”.

"Cidade porosa': Professor de Harvard revê 200 anos de intercâmbio cultural carioca

Na reflexão teórica de Bruno, como nos contos de Marcelo Moutinho, para compreender a cidade é preciso observar espaços que nem sempre enxergamos como pertencentes à ela. Na falta de identificação com o que o poder público nomeia como nação, estado da federação ou município, a identidade dos habitantes, cada vez mais, se constrói pela territorialidade, pelo espaço de trocas e circulação.

Para Carvalho, nesse momento histórico “de desilusão, brutalidade e aparente esgarçamento do tecido social”, é ainda mais importante “ressaltar o protagonismo de grupos marginalizados e a recorrência de mediadores culturais na vida da cidade”. O escritor pode ser um desses importantes mediadores.

Moutinho sobre o Bip Bip: Três apontamentos sobre bar e tolerância - com saideira

Importante observar que os contos de Moutinho adotam uma linguagem que em muito se aproxima da crônica, gênero tão nosso, que partilha com o leitor certa intimidade, espécie de vizinhança, conduzindo quem lê pela mão, caminhando junto. Da cidade maravilhosa à cidade partida, atravessamos juntos o Rio em tempos de decadência de valores, direitos e ideais.

Percorrendo com sensibilidade becos e encruzilhadas talvez possamos, quem sabe, chegar aos caminhos do afeto nesse Rio de Janeiro que já foi de São Sebastião ou Oxóssi.

Serviço

"Rua de dentro", de Marcelo Moutinho Foto: Divulgação
"Rua de dentro", de Marcelo Moutinho Foto: Divulgação

Autor: Marcelo Moutinho. Editora: Record. Páginas: 128. Preço: R$ 39,90. Lançamento: Amanhã, dia 30, às 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo (R. Voluntários da Pátria 97). Cotação: Ótimo.

Beatriz Resende é professora de Letras na UFRJ e pesquisadora do CNPq e da Faperj

Links Bom sucesso