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Cultura

Coronavírus: buscas por pandemias do passado movimentam bibliotecas digitais

Termos como 'gripe espanhola' fizeram acessos a hemerotecas dobrar em países como França e Espanha
Buscas por termos como "gripe espanhola" e "influenza" aumentaram nas hemerotecas digitais Foto: Arte de Fernanda Rossi
Buscas por termos como "gripe espanhola" e "influenza" aumentaram nas hemerotecas digitais Foto: Arte de Fernanda Rossi

RIO — Desde que o Brasil se recolheu em casa, manchetes de pandemias históricas ganharam as redes sociais. Cópias de páginas de jornais antigos, preservados nas hemerotecas de bibliotecas, passaram a frequentar nossas timelines com manchetes de momentos dramáticos de eventos como a gripe espanhola de 1918. Títulos como “O Rio é um vasto cemitério”, “O Centro vai se tornando cada vez mais triste” e até mesmo um singelo “Socorro” ecoam um passado cada dia mais familiar.

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Não por acaso, no último dia 17 de março, data que marcou o início da quarentena no país, cerca de 300 mil pessoas acessaram a hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, onde jornais e revistas antigos podem ser pesquisados em poucos cliques e palavras-chaves. Foi o maior tráfego da história do site. No fim do mês, outro recorde: 6,2 milhões de acessos, quase 1 milhão a mais em relação ao mês anterior.

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A princípio, há uma explicação simples para esses números incomuns. Como o próprio prédio da instituição no centro do Rio havia acabado de fechar para o público em função da crise sanitária, apenas a versão digital do acervo ficou disponível. Mas os responsáveis pelo site notaram outra curiosidade. As buscas por temas relacionados a epidemias explodiram nos últimos dias. Em meio ao confinamento para conter a expansão da Covid-19, o termo “gripe espanhola” foi o quarto mais buscado em março, enquanto “influenza” ficou em nono.

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E o fenômeno também acontece em outras hemerotecas mundo afora. A alta procura por informações sobre a gripe de 1918 fez os acessos da Biblioteca Nacional Espanhola dobrarem. Na francesa, o tráfego aumentou 49% após o confinamento. Geralmente pouco frequentado, o dossiê on-line preparado pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos sobre a gripe teve 1.500 visitas em março. A instituição americana viu crescer o número de visitantes de outros países sob sistema rigoroso de quarentena, como Itália, Espanha e Peru.

— Sempre há uma valorização da História quando as pessoas estão angustiadas — observa Joaquim Marçal, coordenador da BN Digital. — Vivemos uma época em que todos sabem tudo, leem tudo, e ainda assim ninguém entende o que está acontecendo. Então recorremos aos documentos do passado para saber mais sobre aquela história que ouvimos do avô e que se parece tanto com as de agora.

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A crise sanitária virou uma oportunidade para atrair mais visitantes virtuais às bibliotecas. Todas as instituições internacionais importantes procuradas pelo GLOBO confirmaram o aumento consistente de acessos ao seu ecossistema digital, seja em redes sociais, seja em projetos especiais, como aplicativos e jogos educativos.

Ainda fechada para o público, a BN aproveita a quarentena para fortalecer a comunicação digital, explica o seu presidente, Rafael Nogueira. Enquanto o mundo se mobiliza por curas e vacinas contra a Covid-19, o site da instituição viralizou com um post reunindo anúncios de 1918 de remédios suspeitos contra influenza. Uma época em que o álcool em gel não fazia parte do vocabulário, mas em que os inventores de produtos como o “xarope Contratosse” e o “Elixir de Inhame” juravam curar até “escarros sanguíneos”.

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A Biblioteca Nacional da França (BnF), por sua vez, testemunha o crescimento de um improvável interesse por documentos de epidemiologia e sobre a peste bubônica na Idade Média, incluindo edições raras do “Decamerão” de Bocaccio. As profecias de Nostradamus também estão em alta entre os visitantes.

Mas não apenas de doenças e visões apocalípticas vivem os cliques. O clássico “Viagem em torno do meu quarto”, de Xavier de Maistre, ganhou atenção no Gallica (a versão digital da BnF). Escrito em 1794 enquanto o autor estava em prisão domiciliar, o livro faz do confinamento uma excursão ilimitada pela mente humana. Um verdadeiro hino para quarentenados.

— As visitas às hemerotecas aumentaram não apenas porque o confinamento fez as pessoas buscarem novas formas de entretenimento, mas também porque elas querem respostas às suas perguntas — diz Marie Payet, chefe do serviço de comunicações da BnF.

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Foi justamente o que levou o pernambucano Sylvino Gomes, de 37 anos, a acessar a BN Digital pela primeira vez. Nos últimos dias, o servidor da Justiça eleitoral buscou notícias sobre a gripe asiática de 1957, testemunhada pela sua mãe aos 9 anos de idade.

— Minha mãe sempre me falou nessa epidemia e, pelos jornais de Pernambuco do período, pude perceber como o governo ficou preocupado com a sua expansão — diz Gomes. — Pareceu que, na época, as autoridades agiram em uníssono, e não havia vozes tentando minimizar o problema. O que é um contraste em relação à atualidade.

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Para Joaquim Marçal, a volta às manchetes de outrora atesta a importância do jornalismo para a História pública.

— Neste momento em que a imprensa vem sendo tão açoitada, a hemeroteca mostra como jornalistas são os historiadores do tempo presente — define o coordenador da BN Digital. — Tudo que se escreve e se publica na imprensa é a fonte para os pesquisadores do futuro.

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