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Cultura

Coronavírus faz disparar vendas de 'A peste', de Camus, e cancela mais de 20 mil shows na Ásia

Shows cancelados, feiras literárias adiadas e milhares de salas de cinema fechadas são alguns dos efeitos da epidemia no setor pelo mundo
Homem usa máscara num cinema vazio de Hong Kong: prejuízo no cinema pode chegar a U$5 bilhões
Foto: TYRONE SIU / REUTERS
Homem usa máscara num cinema vazio de Hong Kong: prejuízo no cinema pode chegar a U$5 bilhões Foto: TYRONE SIU / REUTERS

RIO — Em meio à apreensão global causada pelo coronavírus , as vendas do livro “A peste”, obra-prima do escritor Albert Camus, dispararam em alguns países. Na França, a procura chegou a quadruplicar em uma semana; na Itália, o livro foi parar na lista de best-sellers. Porém, o impulso comercial dado a essa distopia criada pelo autor franco-argelino em 1947, na qual uma terrível doença assola uma cidade, é uma exceção. Com feiras literárias sendo adiadas, salas de cinemas fechando as portas e turnês de bandas canceladas, a economia da cultura no mundo vêm sofrendo fortes prejuízos em consequência da epidemia.

A suspensão desses eventos, que reúnem grandes públicos, vem sendo usada como importante medida preventiva em locais atingidos pelo vírus. Somente na Ásia, região mais afetada pela doença, mais de 20 mil shows foram cancelados entre janeiro e março, de acordo com dados da “Billboard”. Astros como Avril Lavigne , Green Day e BTS cancelaram turnês no continente, provocando uma perda estimada em U$ 286 milhões.

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O segmento mais atingido, até o momento, é o da indústria do cinema. A revista americana “Hollywood reporter” estima em U$5 bilhões as perdas no setor devido ao coronavírus. O maior baque da área vem da China, segundo mercado de cinema do mundo. Desde janeiro, o país fechou todas suas 70 mil salas de exibição como medida preventiva contra a epidemia. Fundador do portal Filme B, Paulo Sérgio Almeida diz que diz que a estagnação chinesa deixa o mundo em compasso de espera:

— Blockbusters americanos como “Mulan” e o novo “007” tinham estratégias de lançamento iniciadas pela China. Agora terão que tentar outros caminhos .

Entrada do Teatro la Fenice, principal casa de ópera de Veneza, com o informe de fechamento por conta da epidemia de coronavírus Foto: ANDREA PATTARO / AFP
Entrada do Teatro la Fenice, principal casa de ópera de Veneza, com o informe de fechamento por conta da epidemia de coronavírus Foto: ANDREA PATTARO / AFP

A programação cultural na Europa também vem sofrendo os sintomas. A Feira do Livro de Paris, que deveria ocorrer neste mês, foi suspensa. Na Itália, a Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha, a principal do setor, foi adiada para maio. Já a Feira do Livro de Londres estava mantida pela organização, mas foi cancelada nesta quarta diante de desfalques de peso. Entre as dezenas de editoras que cancelaram a ida ao evento estavam gigantes como HarperCollins, Hachette e Penguin.

No Brasil, grandes editoras também não iriam ao evento, como Sextante, Todavia e Companhia das Letras, por conta do alto número de cancelamentos de agências literárias. Outras, como Record e Intrínseca, seriam representadas por editores que já estavam na cidade.

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Uma das principais agentes literárias do país, Lucia Riff já não iria à feira, mas deixou de enviar representantes de sua agência pela ausência de clientes.

— O momento é pior para o negócio das feiras do que para o mercado literário em si. Mas é triste ver toda a rede envolvida com estes eventos amargando o prejuízo — diz ela.

Nas artes visuais, o maior impacto foi o cancelamento da oitava edição da Art Basel Hong Kong , maior feira do segmento na região, programada entre 19 e 21 de março. A Ásia representa hoje um dos maiores mercados de arte, impulsionado sobretudo pela da China, que, em 2019, era o terceiro país em volume de negócios, atrás dos EUA e do Reino Unido. Do Brasil, uma das galerias que voltaria à feira este ano seria a Fortes D’Aloia & Gabriel, com um solo de Janaina Tschäpe.

— Mais do que o volume de negócios, o principal prejuízo é a interrupção em todo o trabalho de relacionamento que fizemos nos anos anteriores, sobretudo em um mercado difícil de entrar como o asiático — comenta Alex Gabriel, um dos sócios da galeria.

Mulher usa máscara em frente a um cartaz de 'Sem tempo para morrer', o novo 007 em Bangkok Foto: MLADEN ANTONOV / AFP
Mulher usa máscara em frente a um cartaz de 'Sem tempo para morrer', o novo 007 em Bangkok Foto: MLADEN ANTONOV / AFP

Professor de economia da cultura da UFRGS e da Queen Mary University de Londres, Leandro Valiati destaca que os efeitos ecônomicos da estagnação de parte do setor pode acarretar o encolhimento do PIB dos países mais afetados. Apesar de ser possível um efeito de compensação, como aumento do consumo de livros e de streaming, isso só beneficia grandes empresas e não a economia local.

— O grande valor da cultura é na troca, na integração com o outro — analisa Valiati. — O tipo de fissura nas relações sociais que o vírus provoca é mais grave do que qualquer efeito no PIB da cultura.

Outro efeito colateral da epidemia, a variação cambial também começa a afetar a vinda de atrações internacionais. Uma delas viria exatamente do epicentro da crise: uma turnê do Circo da China foi adiada pela Opus Entretenimento por conta da alta do dólar. Segundo Lucas Giacomolli, vice-presidente da produtora, as apresentações do grupo no Brasil estavam sendo negociadas para maio, mas foram interrompidas. Agora os planos são trazer a trupe para São Paulo, Porto Alegre e Curitiba só no final do ano, quando acreditam que o mercado estará reorganizado. ( Colaboraram Giuliana de Toledo e Ruan de Sousa Gabriel )

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  • Cinema . O impacto no setor é estimado em U$ 5 bilhões. Além das 70 mil salas da China fechadas, grandes lançamentos, como “Mulan”, iniciariam sua divulgação pelo país asiático.
  • Sets parados . O próximo “Missão impossível” teve as filmagens interrompidas em Veneza, e “Red notice”, com Dwayne Johnson e Gal Gadot, que seria rodado na Itália, pode seguir para outro país.
  • Música . Mais de 20 mil shows foram cancelados entre janeiro e março na Ásia, e turnês de artistas como Avril Lavigne, Green Day e BTS foram suspensas, numa perda estimada em U$286 milhões.
  • Literatura . A Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha foi adiada e a Feira do Livro de Paris, suspensa; a de Londres foi cancelada nesta quarta-feira.
  • Artes visuais . Maior feira da Ásia, a Art Basel Hong Kong teve sua oitava edição cancelada. Em 2019, ela reuniu 88 mil pessoas, com 242 galerias. Entre as maiores vendas estava a tela “Campbell’s Elvis” (1962), de Andy Warhol, adquirida por US$ 2,85 milhões.