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Cultura Coronavírus

Coronavírus: 'Os ativos mais valiosos não serão o dólar ou papel higiênico, mas com quem podemos contar', diz rabino Nilton Bonder

Em tempos de quarentena, religioso virtualizou a sinagoga com rezas por aplicativo de reuniões coletivas e diz, após epidemia, 'o mundo dará um salto na compreensão de valores e prioridades’
Nilton Bonder, o rabino mais antigo em atividade do Brasil Foto: Divulgação
Nilton Bonder, o rabino mais antigo em atividade do Brasil Foto: Divulgação

RIO — Se não se pode ir à sinagoga por causa do coronavírus , a sinagoga vai até você. O rabino Nilton Bonder transferiu para um aplicativo de reuniões coletivas o serviço religioso que acontecia no templo da Barra da Tijuca, diariamente, às 7h30. Sextas e sábados, dias festivos na tradição judaica, o horário muda para 19h e 21h30, respectivamente. É quando ele tem proferido ensinamentos para 300 pessoas do outro lado da tela.

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— Todo mundo fala ao mesmo tempo, é uma confusão — diverte-se. — Abro mão da organização porque o mais bonito é colocar todos juntos neste momento.

Nilton Bonder, rabino mais antigo em atividade no Brasil Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
Nilton Bonder, rabino mais antigo em atividade no Brasil Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

Rabino há três décadas, sendo o mais antigo em atividade no Brasil, o gaúcho de 61 anos mora em São Conrado com a mulher, a arquiteta e artista plástica Esther. O casal vivia a “síndrome do ninho vazio” com a saída dos dois filhos de casa. Mas a quarentena reuniu todos de volta.

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Bonder aproveita para escrever quatro livros da série “Reflexos e reflexões”. Dois, sobre alegria e risco, já foram publicados pela Rocco. O terceiro, previsto para julho, trata de cura. A nova leva é dedicada a afeto, ritmo, sexo e poder.

— Mas o melhor do meu dia tem sido ordenar a casa e meu olhar para a vida.

Que desafios a quarentena traz?

Necessidade de planejamento, divisão de tarefas, criação de rotina nova, convívio intenso. Como nos momentos maiores da vida, os problemas espelham o lado bom. Ter que planejar produz outro cuidado consigo, as tarefas fazem perceber que podemos ser autônomos, novas rotinas abrem oportunidades para o que não se fazia há tempos, o convívio reforça vínculos.

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Como administrar o compartilhamento do espaço?

Num primeiro momento são os “memes” do horror do convívio extremado. Em breve, serão invejados os que constroem parcerias existenciais. Casamentos se fortalecerão. Os ativos mais valiosos não serão o dólar, o papel higiênico ou itens de consumo, mas com quem podemos contar de verdade. Parceiros, que podem ser amigos, cônjuges de todos os gêneros, familiares, estes são os recursos essências de qualquer grande crise.

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Como são as rezas virtuais?

Percebendo a solidão das pessoas, optamos não por uma live dos serviços religiosos, mas por um aplicativo de reuniões coletivas. Sacrificando estéticas sonoras, fazemos as rezas juntos, suportando ruídos que trazem a dimensão não só de real time, mas do real juntos. Como essas atividades são diárias, percebo que estamos oferecendo, além do aspecto espiritual, uma moldura para referenciar o início do dia. Começar a manhã vendo caras conhecidas dissipa a sensação de isolamento.

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O encontro com o outro reafirma a maneira de pensar em torno de uma filosofia. Dá para fazer isso distante? O distanciamento físico terá consequências?

Não temos ideia do que ocorrerá e talvez seja chocante não conseguir antecipar a realidade em um mês. Teremos muitas mudanças de percepção. Primeiro, participamos ficando entocados para que os que prestam serviços essenciais o façam com menor perigo. Pode ser que depois sejamos recrutados para uma participação menos passiva. Acredito na empatia do brasileiro. Em poucos lugares a reação diante de uma emergência é como aqui, onde pessoas correm para auxiliar. Não há problema na vida que não seja um convite à criatividade, à criação de soluções para o que é inédito. O vírus muda porque é da vida. Somos parte da vida e também temos uma capacidade de adaptação incrível, visto nosso currículo como espécie. Vamos, mesmo com adversidade e sofrimento, encontrar um modo de reforçar esses valores.

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Há comportamentos comuns em epidemias: negação, minimização, fuga. Há o preconceito, como o sofrido pelos judeus em relação à peste negra, e agora com quem contraiu o vírus. Há políticos botando a culpa na China. Como manter a civilidade?

Momentos extremos trarão o melhor e o pior de todos. Uma sociedade é o predomínio dos atributos de cooperação e solidariedade sobre os da exclusão e egoísmo. É o que veremos no final: o sobreviver de nossa civilização. Isso não impedirá momentos de privilégio, preconceito ou violência. Leva tempo para perceber que o mundo mudou. Assim como para meus antepassados, que viviam numa Europa iluminista que projetava futuros de humanidade e progresso e que se permitiu atos nefastos revelando o lado sombrio de nossa espécie.

Sairemos dessa transformados?

Sairemos melhores, com aprendizados. Não é que a adversidade trará a era definitiva da harmonia, um tempo messiânico. O nazismo e os horrores da Segunda Guerra ocorreram há 70 anos, e o mundo reavivou supremacistas, neonazistas, skinheads. Nossa evolução vai demandar mais que uma praga. Não estou convocando outras, mas reconhecendo que, para recebermos uma nova revelação evolutiva do que não enxergávamos, não será apenas por sofrimento e privação. Mas o mundo dará um salto na compreensão de prioridades e valores.

Qual é a maior lição?

O que é inédito é que essa pandemia, pela primeira vez, é instantaneamente global. Há uma consciência nova que ganha forma. O que aconteceu na China, o lugar mais longínquo daqui, reverbera hoje na minha casa. Não porque são culpados, mas porque somos como nunca uma só tribo. E os industrializados que poluem e agravam o clima irão impactar ainda mais a sua casa em breve. Não somos mais locais, mas parte dessa nave Terra, amigos e inimigos, parceiros e adversários. Temos que pensar nessa tribo e não na nossa pequena, porque os efeitos em nossa casa serão cada vez mais por conta das questões da tribo maior.

Que recado nos dá para ajudar a encarar essa travessia?

Fiquem alegres. A alegria independe das limitações, ela é inerente a viver. Todos estamos perdendo dinheiro, oportunidades, projetos e até a vida. Isso não inviabiliza a alegria de viver os momentos, as trocas, os carinhos e de resistir até que se dê a travessia deste mar. Ele vai abrir! E mais chances de estarem na outra margem terão os que caminharem sem abdicar de sua alegria.