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Cultura Monja Coen

'Coronavírus veio mostrar que somos todos seres humanos', diz a missionária Monja Coen

No ar em 'Caminho Zen', budista afirma que quarentena é momento de desenvolver a compaixão e a sabedoria, sem julgamentos
Monja Coen Foto: Bruno Prada / Divulgação
Monja Coen Foto: Bruno Prada / Divulgação

RIO - Parafraseando Luis Fernando Verissimo: Zen numa hora dessas? É exatamente com este estado de espírito que a missionária budista Monja Coen sugere que encaremos a quarentena. Lugar de fala não lhe falta. Há mais de 30 anos, ela se dedica aos mistérios da existência e tem intimidade com a experiência do isolamento em mosteiros e retiros.

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Um pouco dessa sabedoria, Monja compartilha no programa “Caminho zen”, dirigido por Alberto Renault, no ar no GNT às quartas, 23h (e disponível no Now). Ao lado de Fernanda Lima, ela faz uma “viagem interior” pelo Japão, onde conversam sobre temas contemporâneos como a nossa relação com o tempo, desapegos e afetos. O programa foi gravado, é bom lembrar. Ela já está em casa, em São Paulo. Aos 72 anos, Cláudia Dias Batista de Souza, como foi batizada, conta que, antes de ser monja, era jornalista e andava de moto. Se interessou pela meditação na época em que Beatles e Pink Floyd falavam do assunto, quando escreveu uma reportagem sobre sociedades alternativas.

— Meditei e pensei: “Isso faz sentido na minha vida”. Eu não era muito controlada... Brigava, batia o pé, ficava mal humorada. Era o lugar onde me curava da raiva, do julgamento — lembra ela, que se casou aos 14 anos, teve uma filha aos 17, quando o marido foi embora.

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Nesta entrevista, feita na distância segura do WhatsApp, ela sugere aproveitarmos o recolhimento para repensar nossa consciência coletiva e ressignificar o que importa.

Como podemos aproveitar positivamente a quarentena?

Podemos arrumar a casa e a nossa mente, reorganizar a vida. Reaprender a respirar. Tantas coisas passamos apressados porque temos compromissos e trabalho. É preciso ter cuidado para não ficar perdido nas redes sociais e deixar de apreciar momentos de silêncio, introspecção, percepção mais profunda de si mesmo. Pergunte-se: “Quem sou eu?”, “O que é vida?”, “O que é morte?”, “O que estamos fazendo aqui?”. É hora de ler, estudar, fazer escolhas adequadas, refletir, falar menos, estar mais presente. Um momento belíssimo de desenvolver a compaixão e a sabedoria. Não é o que você gostaria de fazer, mas o que deve ser feito. Santo Agostinho dizia que a liberdade é você fazer até o que não gostaria de fazer. Somos livres e, por isso, ficamos em casa, para o bem de todos. Podemos, de longe, apreciar a vida, ver as árvores, ouvir os pássaros. Estar com sua família, com você mesma. Aprecie.

Qual aprendizado podemos tirar do isolamento?

Aquilo que já sabíamos e havíamos esquecido: somos um só corpo, uma só vida, com todo o planeta. Não existe nada nem ninguém separado. Somos a vida da Terra em transformação e pertencemos a uma única espécie, a espécie humana. Não importa se seus olhos são redondos ou puxados, se a cor da  sua pele é clara ou escura, onde você nasceu, que língua fala. O que o coronavírus veio mostrar é que somos todos seres humanos. Isso é o importante para romper as barreiras de discriminações e preconceitos. Não interessa se homo, hétero ou transexual: o vírus pega todos. Não conhece fronteiras ou partidos políticos. Este é o momento de nos reunirmos como seres humanos,  chegar na essência do nosso ser e nos cuidar com respeito, com dignidade. Procurar meios de minimizar dor e sofrimento, ajudar, mesmo à distância, aqueles que precisam, contribuir para que passemos por essa pandemia com o menos possível de dor.

Como espantar a tristeza e a solidão durante o processo de recolhimento?

Nunca estamos sós, esta é uma fantasia da nossa mente. Você está com você, com todo o seu passado e futuro, com os inúmeros autores que pode ler. Os canais de televisão estão todos abertos, a sua janela é a rua, te mostra pessoas, árvores, pássaros, baratas e formigas. Sinta prazer na sua própria companhia. Prazer em estudar, pesquisar. Pode fazer ioga, atividade física mesmo que more em um cubículo de dois metros quadrados. Aprecie sua vida, respire conscientemente, não reclame, não resmungue.  É tempo de apreciar a vida.

Alguns religiosos têm se negado a cancelar seus cultos. Essa postura não iria contra os princípios básicos de qualquer religião, como amor ao próximo, por exemplo?

Tem gente achando que é brincadeira ou excesso, que as pessoas precisam rezar juntas. Não é o prédio  ou a casa que nos colocam juntos, é o nosso coração. Podemos orar das nossas casas, meditar. Estou disponibilizando vídeos com práticas virtuais para estarmos juntos (às segundas, 20h30, Monja fará transmissões ao vivo via Facebook em seu perfil e no do Zen do Brasil). Não precisamos tocar no outro ou respirar o ar da mesma sala, mas permanecer unidos pelo propósito comum: o bem de todos. Vamos perder dinheiro? Sim. As pessoas não irão aos templos, não farão doações, mas é por um período. Há  uma doação maior que se faz, a da vida. Lamento por aqueles que não perceberam isso.

Há pessoas estocando comida. A forma como nos comportamos em meio à crise diz bastante sobre nós?

Muitas pessoas ainda pensam só nelas. Ainda é aquele pensamento egóico, anterior à  percepção de que somos uma só vida.  Algo de maravilhoso que aconteceu no Japão com o horror da tsunami foi que ninguém saqueou nada. Nem uma nota de dinheiro foi tirada do solo enlameado, nem um casaco foi pego antes, mesmo com o frio que fazia. Porque as pessoas conhecem o que é vida comunitária, percebem que estamos no mesmo barco. Pegue o que precisa, mas não exceda, porque vai faltar para alguém. Se já fez isso, assustado e com medo, compartilhe com o seu vizinho, deixe na porta dele. Vamos compartilhar não só festas e alegrias, mas alimentos e necessidades comuns a todos.

Na sua opinião, qual é o maior conflito da nossa sociedade hoje?

Talvez o que mais tenha prejudicado nossa sociedade tenha sido uma criação egocêntrica,  a do “eu primeiro”. “Eu não posso morrer”, “eu não posso sofrer”, “eu não posso passar fome”. Quando a gente coloca esse “eu” no devido lugar, há uma mudança, fica o “nós”. Talvez esse vírus sirva para que se entenda como é importante compartilhar. A compaixão de manifesta, temos que pensar nos mais vulneráveis. Foi-se o tempo em que cuidávamos de nós como se fôssemos separados. Pensemos em como cuidar uns dos outros e sair do “eu preciso apenas me proteger”. Não há redoma, mas podemos evitar a transmissão do vírus. Eis a oportunidade de trabalharmos remotamente, experimentarmos ficar em casa por semanas, talvez meses. Sem brigas, impaciências, mas agradecendo a cada dia a bênção da vida, da capacidade de pensar e de poder cuidar. Estar mais perto da gente mesmo. Que a natureza iluminada em cada um de nós desperte e nos tornemos mais amorosos, menos briguentos,  discriminadores e preconceituosos. Que possamos alargar nossos canais de percepção. Porque o que tem nos atrapalhado é essa visão pequena da realidade do mundo. A ganância, a raiva e a ignorância são três venenos que vencemos com compaixão, sabedoria e doação.

Para onde caminhamos? A senhora tem fé na Humanidade?

A Humanidade está construindo seu caminho. Se tenho fé? Não é bem fé, não sei o que significa isso. Será que seremos capazes de despertar? Provavelmente. Quando? Não sei. Talvez o coronavírus venha para dar uma percepção. Mas será que estão entendendo isso? Ou que estão brigando dentro de casa, ficando irritados, assustados, com medo de morrer e não percebendo que o vírus está nos dizendo? Que se nos cuidarmos mutuamente vai ser melhor para todos. Não é  um vírus do outro lado do mundo que não me afeta. Tudo que acontece em qualquer parte do mundo nos afeta. Se a maioria dos seres humanos conseguir acessar isso, vamos ter uma vida mais plena, mais amorosa, respeitosa. Quando falamos Humanidade, queremos dizer o quê? Todos os seres do planeta? Os que já foram, os que são e os que virão? Não sabemos. Vai depender da educação, do treinamento e das nossas capacidades de percepção. Quando soubermos que somos um só corpo, vamos cuidar melhor uns dos outros, não haverá guerras ou abusos. Ainda estamos um tanto longe desse local.

A solução está dentro de nós?

No budismo, dizemos que não há nem dentro nem fora. Todas as nossas células do corpo estão em constante comunicação com tudo que existe. Procuramos impedir que o coronavírus entre através de olhos, nariz e boca, mas a pele está aberta, ela recebe tudo. Onde é o dentro, onde é o fora? Eis o momento importante para olharmos para a essência do ser. E tenho a impressão de que ela está dentro de nós e em toda parte. A solução está em estarmos presentes onde estamos e apreciando até mesmo as dificuldades, apreciando a vida.

A pajé Putanny Yawanawá me disse, numa entrevista: “A cura do mundo é pela espiritualidade, e ela é coletiva”. A senhora concorda?

Assim como a pajé, assim como o historiador de Israel (Yuval  Harari), acredito que a meditação, a  capacidade de expansão da consciência, é o que fará a mudança sócio-política, econômica de todos. Quando comecei a praticar a meditação, percebi que não precisava pertencer a nenhum grupo político, ser de extrema-direita, de esquerda, nem de centro, ter projetos econômicos mirabolantes para salvar países. Entendi que cada ser humano precisa despertar. Esse despertar da Humanidade, é o que essa amiga pajé chama de espiritualidade: a percepção de algo maior, que é a vida.

Há quem diga que caminhamos para uma transformação. Que esse recrudescimento da sociedade, como o Brexit e ascensão da extrema-direita, representa os últimos estertores da sociedade como a conhecemos. O que acha?

Como diz o professor (Leandro) Karnal, o pêndulo da História vai de um lado para outro. Que nossa civilização está se transformando, está. A inteligência artificial é a grande mudança. E ela, os  celulares, os computadores estão nos fazendo perceber aquilo que sempre foi verdade e que mascaramos por algum tempo: que estamos todos interconectados, que somos um só corpo e é preciso cuidar para que seja bom para todos. Nada tem uma autoidentidade substancial independente e separada. O monje vietnamita Thich Nhat Hanhdiz diz que existe uma nova palavra para os dicionários: interser. “Intersomos” em interrelação com tudo que existe. Novos caminhos se abrem a cada instante. Vemos um novo caminho se abrindo agora.

Que pequenos hábitos podemos adotar para encontrar a tranquilidade em meio às distrações do mundo?

Não só em meio às distrações do mundo, mas às brigas internas. Nas famílias, nos ambientes em que vamos ficar confinados por algum tempo. Você pode fazer da sua casa uma prisão ou um caminho de libertação. Até os pássaros estão presos pelos espaços nos quais podem voar. Não há essa liberdade imaginária. Pode ser extremamente agradável estar na sua própria companhia. Você poder ler um livro, viajar para longe, para o passado, para futuro, para o presente. Pode sentar-se em meditação, respirar conscientemente e oferecer os méritos de suas preces e orações, suas práticas espirituais meditativas para que todos se beneficiem. Não brigue com a pessoa que vive com você, pense nas qualidades do outro. Não só agora, com o corona. Não podemos criar caos, fazer da nossa vida um desespero. Há pessoas brigando nas ruas, farmácias, supermercados. Se não sair do individual, não vai ser feliz ou encontrar a paz nunca. É preciso descobrir o contentamento com a existência.

O que de mais precioso o budismo te trouxe?

A presença pura, a capacidade de estar completamente presente onde estamos. Desenvolver a percepção mais profunda da realidade. Olhar em profundidade mesmo que seja o prato de arroz, o pano de chão. Ver toda a vida da Terra. Procurar ser excelente naquilo que está fazendo, sem julgamento, escolha, preferência. Chamo isso de educar o coração, a mente, a essência do ser. Sensibilizar essa essência, comum a todos nós, mas que muitos deixam ficar embaçada, rude.