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Cultura

Coronavírus: 'O verbo é acalmar-se, e não ser acalmado pelos outros', escreve psicanalista

Christian Dunker lembra que epidemia pode ser experiência transformadora, embora dolorosa, e que o medo se combate com precaução e medidas objetivas
Funcionário da prefeitura de Istambul, na Turquia, desinfeta a mesquita Mihrimah Sultan como medida para evitar a expansão da Covid-19: país também está em alerta Foto: OZAN KOSE / AFP
Funcionário da prefeitura de Istambul, na Turquia, desinfeta a mesquita Mihrimah Sultan como medida para evitar a expansão da Covid-19: país também está em alerta Foto: OZAN KOSE / AFP

Em agosto de 2019, o céu de São Paulo tornou-se subitamente escuro, em função das queimadas da região Norte. Anos antes, não pudemos sair de casa porque o PCC assumiu um ataque massivo contra a polícia. Vez ou outra as chuvas interditam ruas e estradas do país, destruindo casas e barragens. Estes momentos de exceção trazem transtorno, medo e desordem pois neles nossa vida prática se vê obstruída. Temos que parar e pensar. A lei do dia a dia é revogada e surge uma brecha na ordem das coisas.

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Tais momentos nos lembram que, por mais que tenhamos sonhos de controle sobre a natureza, sobre os outros e sobre nós mesmos, há ainda uma força maior que nos submete. Não estamos mais acostumados a enfrentar o poder da natureza sem que ele esteja combinado com a imprudência, imperícia ou negligência humana. Quando algo dá errado nos dirigimos inevitavelmente à busca de culpados e responsáveis, como se estes, uma vez localizados, nos autorizassem a voltar a dormir o sono dos justos.

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A pandemia de Covid-19, que se alastra pelo Brasil, faz lembrar as lições trazidas, desde sempre, pela peste como estado de exceção. A primeira delas é que a peste é democrática, atingindo ricos e pobres, mulheres e homens, brancos e negros, crianças e idosos, ainda que sobre estes últimos ela seja mais impiedosa e letal.

A peste materializa e sintetiza nossa relação com os outros, porque mobiliza a ideia de contágio e transmissão pelo contato. Coisas que passam de um para outro se prestam a simbolizar que a essência do convívio humano é a troca. Por isso a peste encarna nosso imaginário sobre a origem do mal. O mal não está e nem vem de nós mesmos, mas vem do outro, ele vem de longe, vem do Oriente, vem da China, que como os bárbaros da antiguidade não fala nossa língua. A peste nos ameaça porque não ataca apenas nossos corpos, mas nossas identidades, nossos sentimentos de pertença e de filiação a uma determinada ordem.

Pretexto para invocar fantasmas

Toda doença séria e potencialmente letal levanta esta pergunta moral: o que fiz para não ser tão amado e protegido pelo Outro que me envia isto? Nossa irresistível tendência a ler a doença como uma mensagem tem a ver com a resistência a aceitar que existem coisas que não conhecemos e, portanto, não dominamos. E quando isso acontece criamos ficções e hipóteses para ler o que em princípio não tem sentido.

Na grande peste de 1666 erguiam-se fogueiras imensas nas encruzilhadas que davam caminho para as grandes cidades, como forma de evitar a peste bubônica. A teoria por trás da prática era de que o medo predispunha a pessoa a contrair a peste. A prova de coragem, enfrentando o fogo, ao mesmo tempo purificava e autorizava a chegada do estrangeiro puro e afastava o estrangeiro impuro. A peste se transmitia pelo olhar invejoso que o doente lançava sobre o sadio. Nossa tendência diante do que não compreendemos é ficar juntos, criar grupos e dar as mãos. Ora, a crueldade adicional imposta pelo coronavírus é que justamente isso é o que não devemos fazer.

A peste convoca em nós esta dupla tarefa de enfrentar o medo e de fazer frente à angústia. O medo nos faz agir, avaliar riscos e calcular estratégias. Diante do medo podemos atacar ou fugir. Ele nos incita a tomar medidas protetivas, obedecer restrições de contato social ou métodos de higiene e limpeza. Só um tolo desfaz do medo apegando-se à ideia de que não há motivo para o temor, que a fé nos protegerá ou que a doença é apenas uma invenção imaginativa.

O problema começa quando o medo do que vem de fora se contamina com a angústia com o que vem de dentro. Percebe-se assim como a ideia de contaminação é uma ideia objetiva e subjetiva. Ela fala da transmissão real de um vírus de corpo para corpo, da passagem simbólica da cultura entre nativos e estrangeiros, mas também da mistura imaginária entre o bem e o mal dentro de nós. Por isso a doença é o pretexto ideal para ativar preconceitos, invocar fantasmas e revitalizar complexos infantis.

Podemos distinguir três reações básicas diante da pandemia: o tolo, o confuso e o desesperado. O tolo desconhece a importância do medo. Desprevenido e desinformado, ele irá em busca de culpados. Ele não é corajoso porque não reconhece os riscos e resolve atravessá-los mesmo assim. Ele simplesmente não quer saber do perigo, por isso também não toma providências. O confuso é aquele que lida com a angústia tentando transformá-la inteiramente em medo real. Ele estocará quilos de papel higiênico, andará com tonéis de álcool gel no bolso e saberá tudo que todos os governantes falam, mas também acompanhará todos os boatos e disseminará todas as hipóteses. Finalmente, a reação dos desesperados transformará todo o medo, gerado pela indeterminação, em motivo para incremento de angústia.

Quando éramos pequenos desafiávamos a imensidão do mar, às vezes sem uma mão amiga. O tolo era aquele que não acreditava na profundidade marinha e achava que aquilo era apenas um truque que os pais criavam para ele não ir longe demais. Os confusos descobriam que, diante da imensidão do oceano, infelizmente eram menores do que se imaginavam. Passavam horas brincando de segurar as ondas e construindo resistentes castelos de areia. Enquanto isso os desesperados enfrentavam aquela onda maior, que tirava o chão sob os pés. Naquele instante infinito eles podiam afundar a cabeça, engolir água ou debater-se em desequilíbrio. Alguns aprendiam, a duras penas, que é possível entregar-se ao movimento e esperar, porque aquilo também passará.

Compare agora a imagem desta onda com as curvas de evolução provável da Covid-19. Será ela uma curva em pico, no auge da qual não teremos recursos para entubar todos os necessitados, com afluxo massivo aos hospitais em estado caótico? Ou teremos uma curva baixa e mais longa, derivada de uma certa consciência coletiva de que sim, o perigo existe, e que sim, ele nos trará angústia de saber se seremos ou não escolhidos, mas que ainda assim podemos agir sobre o medo, evitando aglomerações, reduzindo o contato entre crianças e idosos e também aprendendo algo sobre nossos próprios fantasmas?

Ilusões de controle e dominação

Acalmar-se é algo que ninguém pode fazer por você. Se você espera que apenas mais notícias, informações e comentários venham pacificá-lo, ou se você acha que aumentar o estoque de máscaras vai sanear sua angústia, você está se enganando. O verbo é acalmar-se, e não ser acalmado pelos outros e pelos objetos. O medo se combate com precaução e medidas objetivas, a angústia com cuidado e trabalho subjetivo. Neste sentido a pandemia tem muito a nos ensinar, especialmente quanto a nossas ilusões de controle e dominação sobre o mundo e nosso destino. A crença digital de que somos muitos importantes e tantas outras promessas nos fazem acreditar que somos soberanos sobre nossas vidas.

Daí aparece um pequeno micro-organismo, bastante limitado do ponto de vista de sua capacidade reprodutiva e de sua estrutura biológica de RNA e nos derruba. Ou seja, do ponto de vista de nossa angústia, o coronavírus não poderia ter um nome melhor: ele nos tira do trono de nós mesmos e coloca a coroa de nossas vidas em sua justa dimensão. É a coroa de espinhos que convoca uma experiência escassa em nossa época: a humildade.

Diante desta pequena e destrutiva força da natureza, nosso narcisismo se dobra como um vassalo encurralado. Apesar de dolorosa como um espinho na alma, esta pode ser uma experiência profundamente transformadora. Descobrir que podemos muito menos do que pensamos, aceitar o imponderável que nos governa e acolher com humildade o que ainda não dominamos pode ser muito benéfico. Pode ser uma verdadeira terapia para aqueles que precisam descansar a cabeça do peso de sua coroa de espinhos narcísicos.

Christian Dunker é psicanalista e professor titular da Universidade de São Paulo, autor de “Mal-estar, sofrimento e sintoma — Uma psicopatologia do Brasil entre muros” (Boitempo Editorial) e “Reinvenção da intimidade — Políticas do sofrimento cotidiano” (Ubu Editora)