Cultura

Cristovão Tezza usa desilusão do Brasil atual como pano de fundo de seu novo romance

Em 'A tensão superficial do tempo', escritor catarinense celebra sua paixão pelo cinema e faz raio-x da divisão política do país
O escritor Cristovão Tezza Foto: Guilherme Pupo / Divulgação
O escritor Cristovão Tezza Foto: Guilherme Pupo / Divulgação

RIO — Após “A tradutora” (2016) e “A tirania do amor” (2018), Cristovao Tezza parece completar uma espécie de trilogia da tragédia brasileira contemporânea em seu novo romance, “A tensão superficial do tempo” (Todavia). Aos 67 anos, o escritor catarinense reflete sobre a profunda crise moral e política do país por meio da história de Cândido, um solitário professor de química quase quarentão que pirateia milhares de filmes para a sua mãe, a octogenária dona Lurdes, com quem vive.

— A minha ficção quase sempre refletiu aspectos do instante presente do país. Vendo agora, meus três últimos romances contemplaram a Era Dilma, a passagem de Temer e o atual bolsonarismo — diz Tezza, que ficou conhecido do grande público com o premiado “O filho eterno” (2013), romance de tintas autobiográficas cujo protagonista, como ele, tem um filho com down. — O que me interessa são as pessoas, mas, é claro, ninguém vive num vazio da história. Assim, é mais uma trilogia do acaso.

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Mas pouco é fruto do acaso no contexto em que os personagens estão inseridos. Nos debates do cursinho onde Cândido dá aula, surge um microcosmo da divisão política brasileira, como o debochado esquerdista Mattos e a “baluarte da direita” Juçara.

— Como ficcionista, eu sempre me forço a manter algum ponto de empatia com qualquer personagem ativo no romance, mesmo os mais desagradáveis. Nesse sentido, a sátira não é a linguagem do narrador, embora possa estar presente na voz de alguém — diz Tezza, que menciona Dario, um procurador, e sua mulher Antônia, com quem Cândido tem um caso. — O Mattos diz algumas coisas que eu assinaria embaixo. Mas mesmo o procurador, quando comenta Brasília, diz muitas coisas com que concordo.

Fragilidade masculina

Situada em Curitiba, a trama apresenta uma profunda desilusão com o Brasil, em trechos como “Essa porra dessa esculhambação da internet que botou esses imbecis no poder, a ministra que viu Jesus, o filósofo terraplanista… onde essa merda vai parar?”

— Eu não me lembro de nenhum outro momento da minha vida em que tenha sentido uma angústia política semelhante à provocada pelo bolsonarismo. Tudo é de uma estupidez inacreditável, envolta numa pré-retórica ofensiva. Não chega a configurar uma retórica; o governo, rigorosamente, não sabe falar, e não quer falar, porque conversar pressupõe a existência de um ouvinte ativo, o que é inaceitável para o bolsonarismo. Mas tudo isso vai passar, o coronavírus e o governo. Como diz o sábio lugar comum, o tempo é implacável.

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No livro, contudo, o nome de Bolsonaro jamais é mencionado, citado sempre apenas como “presidente”, “presidência” ou “governo”.

— Aconteceu meio por instinto de escritor, talvez porque o estado de espírito do bolsonarismo é que seja o objeto real dos comentários dos personagens, o clima disseminado de estupidez que atravessou 2019 e prossegue até hoje desde o primeiro dia.

Segundo o autor, Curitiba, a cidade onde vive, “ficou marcada pela Lava-Jato”:

— Curitiba é minha pele. Não consigo me imaginar fora daqui: eu sempre brinco dizendo que é a cidade perfeita para quem escreve, porque não há nada a fazer. Um certo conservadorismo punitivo e vigilante é uma das marcas tradicionais curitibanas, mas, pensando bem, isso é uma síntese de uma parcela importante do Brasil.

Capa do livro "A tensão superficial do tempo", de Cristovão Tezza Foto: Divulgação
Capa do livro "A tensão superficial do tempo", de Cristovão Tezza Foto: Divulgação

Se em seus últimos dois romances o fio condutor intelectual da trama foram os pensamentos de dois filósofos — o catalão Felip Xaveste e o holandês Baruch Spinoza —, agora é a vez da sétima arte assumir este papel, com referências a diretores e filmes entrelaçando a narrativa, a partir dos longas pirateados por Cândido.

— Eu vejo filmes todos os dias. E o cinema esteve presente em minha vida desde criança, em Lages (SC). Para mim, diferentemente da literatura, a influência do cinema é difusa, quase que inconsciente, um mundo paralelo permanente — afirma Tezza, que dedicou o livro à sua mãe. — Eu realmente abastecia minha mãe de filmes de locadoras, e a partir disso criei a biografia imaginária de Cândido e dona Lurdes.

Cultura do cancelamento

Em uma passagem, Hélia — a ex-mulher de Cândido, uma ferida aberta em sua vida — critica o machismo de Alfred Hitchcock, com Woody Allen também mencionado na conversa.

— A cultura do cancelamento é mais um dos aspectos da violência estrutural contemporânea que a internet propicia sem custo e sem risco. Um comportamento de manada em que os bois não são visíveis. É claro que pessoa e obra devem ser sempre separadas. Toda boa obra de arte é expressão de uma linguagem que transcende os limites de seu autor e responde ao tempo indo além dele.

Já o protagonista tem um comportamento de extrema fragilidade frente às mulheres. Além da relação umbilical com a mãe, Cândido vive assombrado pelo amor perdido de Hélia e desmonta quando o romance com Antônia não vai adiante.

— Olhando de fora, talvez seja um momento mundial de fragilidade masculina, e a linguagem absorve este espírito. Personagens são criações intuitivas ou instintivas; de repente elas têm vida própria. A liberdade do narrador só dura até a segunda frase do livro

Forte figura feminina de sua literatura, “A tradutora” Beatriz reaparece em “A tensão superficial do tempo”, como uma colega de cursinho de Cândido.

— Eu gosto de Beatriz, tem muito de meu alter ego, por assim dizer. E sempre senti inveja dos escritores de livros policiais, porque eles não precisam inventar um personagem principal a cada livro.  O mesmo detetive percorre os romances, o que facilita a vida do escritor. Acho que Beatriz ocupou esse espaço na minha literatura. Aliás, talvez ela volte no próximo livro, mas desta vez novamente como protagonista.

Serviço

“A tensão superficial do tempo"

Autor: Cristovão Tezza. Editora: Todavia. Páginas: 272. Preço: R$ 64,90.

Leia trecho do livro

Pensou em dizer pode me chamar apenas de você, porque ela alternava misteriosamente “você” e “senhor”, ninguém mais usa “senhor” neste mundo irrevogavelmente democrático e sem hierarquia, essa porra dessa esculhambação de internet que botou esses imbecis no poder; a ministra que viu Jesus; o filósofo terraplanista;o débil mental contra o globalismo que imagina que o presidente dos EUA é o retorno de Cristo;o elogio dos torturadores; o movimento das neotrevas contra a vacina, rezando pela volta triunfal da varíola; o idiota liberando armas para combater a violência; onde essa merda vai parar?!, eles conseguem ser ainda piores do que tudo que já tivemos, por favor, tragam alguém que seja do ramo para tocar esse país, e o colega estendeu o celular com a manchete, olhe, veja aqui a última do sujeito, caralho, é impressionante o que ele disse, e esse homem é o presidente do Brasil!, e o velho professor Mattos respondeu ao colega rabugento, calma que o Brasil é grande,lento, irreversível e pesado, pouco a pouco vai esmagá-lo.