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Cultura

Crítica: Vargas Llosa ao estilo Vargas Llosa

Novo livro do escritor peruano, “Tempos ásperos” trata da Guatemala da década de 1950, mas nada do que está no romance histórico é estranho aos latino-americanos
O escritor peruano Mario Vargas Llosa lança novo livro Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
O escritor peruano Mario Vargas Llosa lança novo livro Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Aos 84 anos, o peruano Mario Vargas Llosa volta às livrarias com “Tempos ásperos”, romance histórico que trata da Guatemala da década de 1950. Falando assim, parece algo distante do nosso tempo e espaço, mas não é por aí. O Nobel de Literatura 2010 alerta, já no primeiro parágrafo, que está lidando com personagens que muito influenciaram o destino da América Central no século XX. Por extensão, sendo nosostros latino-americanos também, nada do que está no novo livro nos é estranho — para o bem e para o mal.

Capa do novo livro de Vargas Llosa Foto: reprodução
Capa do novo livro de Vargas Llosa Foto: reprodução

Autor de “Conversas no Catedral” (1969) e “A festa do bode” (2000), que têm como tema, respectivamente, a banda podre da política no Peru e na República Dominicana, Vargas Llosa agora conta a trama que resultou num golpe de Estado em 1954, derrubando o presidente guatemalteco Jacobo Árbenz. De quebra, retrata a conduta mesquinha dos líderes de um país pobre em ascensão, sujeitos de baixo extrato que dispensam a vergonha para lamber as botas dos EUA.

Qualquer semelhança com nossa história não será mera coincidência. Ao fim de “Tempos ásperos”, lançado nos países de língua espanhola ano passado, é impossível não perceber que o golpe na Guatemala foi só mais um caso da política predatória que os EUA já adotavam em toda a América Latina desde o século XIX.

Caminhando rumo a um certo “socialismo espiritual”, a Guatemala vivia desde os anos 1940 uma época de mudanças positivas para trabalhadores e para a população rural. Eleito democraticamente em 1950, Árbenz manteve um programa progressista, investiu em educação, abriu espaço para sindicatos e começou a tocar uma reforma agrária. Aí deu ruim. Atiçou a alergia americana ao cheiro de comunismo.

Lembre-se que a Guerra Fria já ocupava o imaginário do planeta, e os EUA não economizariam em recursos e truques sujos para evitar a presença soviética no “seu” continente, a dois passos do Canal do Panamá. Coube à CIA derrubar Árbenz, impondo à pátria alheia um comandante pateta e uma ditadura que persistiu por décadas.

Vargas Llosa deixa bem claro que esse medo do comunismo era apenas um discurso imbecilizante, que encobria a questão primordial: manter a hegemonia americana em qualquer mercado. Prova disso está num grande personagem real citado no livro, o austríaco Edward Bernays, que se criou nos EUA. Gênio da propaganda e das relações públicas, sem qualquer pingo de ética, foi o articulador da crise política que resultou no golpe. Seus planos para a Guatemala serviriam para outro país qualquer — o Brasil, inclusive.

Democracia como?

Desde antes do governo Árbenz, Bernays já dizia que o perigo de a Guatemala se tornar comunista era irreal, “mas nos interessa que se pense que ele existe, principalmente nos EUA”. Garantia que o governo local queria uma democracia ao estilo norte-americano, sem chance de se realizar. Afinal, questionava, “Como pode ser uma democracia moderna um país com 70% de analfabetos, liderados por uma minoria branca e racista?”

Sobrinho de Freud, Bernays sabia lidar com o comportamento humano. Hábil criador de factoides e fake news, escreveu que “a manipulação consciente e inteligente dos hábitos organizados e das opiniões das massas é um elemento importante da sociedade democrática. Quem manipula esse mecanismo desconhecido da sociedade constitui um governo invisível que é o verdadeiro poder no nosso país…” O peruano comenta que essa tese, “que alguns críticos consideraram a própria negação da democracia”, foi aplicada com sucesso. E continua sendo, digamos.

Por essas e por outras, Vargas Llosa vê o golpe de 1954 na Guatemala como o mais violento do continente, por ter inspirado tantas mortes em tantos países. Diz ele que naquela época, por exemplo, Che Guevara vivia justamente na Guatemala, vendendo enciclopédias para sobreviver, e viu de perto a derrubada de Árbenz. Teria percebido, então, que somente o extermínio dos militares governistas garantiria mudanças revolucionárias.

“Tempos ásperos” vai nessa linha. É uma reflexão política disfarçada de romance, bem ao gosto do autor. Além de novelões tão pueris quanto deliciosos, como “Travessuras de menina má” (2006) e “Elogio da madrasta” (1988), o Nobel peruano sempre escreveu sobre questões políticas da América Latina. Em 1990, chegou a concorrer à presidência do seu país. Perdeu, mas encarnou de vez o espírito da direita mais tacanha e hoje vive disso.

É certo que “Tempos ásperos” não nos deixa exatamente orgulhosos das relações latino-americanas com os EUA. Mas a longa experiência do escritor, que publicou sua primeira novela (“Os chefes”) em 1959, nos conduz sem sustos até a última página.

“Tempos ásperos”

Autor: Mario Vargas Llosa. Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman. Editora: Alfaguara.

Páginas: 280.

Preço: R$ 59,90. Cotação : Bom.