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Cultura

Curado do coronavírus, cantor Jorge Drexler relata: 'O mais estranho foi perder paladar e olfato’

Artista uruguaio, que também é médico, conta que viu a fragilidade humana em seu corpo e diz que a pandemia traz o fim da era das opiniões: ‘É um retorno ao conhecimento, à razão. Não estamos esperando um milagre, mas a vacina’
Jorge Drexler diz que o vírus traz o fim da era das opiniões Foto: Divulgação / Jesus Cornejo
Jorge Drexler diz que o vírus traz o fim da era das opiniões Foto: Divulgação / Jesus Cornejo

Curado do coronavírus, o cantor uruguaio Jorge Drexler aparece no Skype com uma cuia de chimarrão. Ele sorve cada gole com o prazer de quem passou oito dias “sem sentir gosto nem cheiro”, sintoma da doença que também contaminou sua mulher, a atriz e cantora espanhola Leonor Watling, além de um dos dois filhos do casal. De Madri, onde vive, o compositor quer saber em que cidade do Brasil está a repórter. Ao ouvir “Rio de Janeiro” abre um sorriso, mas interrompe seu comentário no meio.

— Ia dizer que estou com inveja, mas sem poder sair de casa, agora dá tudo no mesmo — diz.

O músico, de 55 anos, conta que a primeira a ser contaminada foi Leonor. Ela esteve em uma premiação de cinema de onde muita gente saiu doente. Dias depois, foi ele quem começou a sentir-se mal. Evitou ir ao hospital para não sobrecarregar o sistema de saúde, já que o exame clínico é recomendado apenas para os casos mais graves. Ligou para um médico e, ao narrar o que sentia, teve um diagnóstico positivo para o vírus.

— O corpo todo dói muito, é uma tosse esquisita. Senti a fragilidade humana no meu corpo. O mais estranho foi perder olfato e paladar. Também senti um peso no peito e tive muito medo, um medo que eu não experimentava há muito tempo. Mas essa não deve ser nossa força motriz. O medo é um mau conselheiro, porque parte da população que deveria se cuidar em casa satura as emergências públicas — alerta o compositor, que também é médico (especializado em otorrinolaringologia) e trabalhou durante cinco anos em emergências hospitalares.

A experiência rendeu muitas amizades na área. E é por meio de um chat com esses amigos médicos que ele recebe, diariamente, notícias do front do combate ao coronavírus no Uruguai. No entanto, desde que se curou da doença, tem se dedicado mesmo aos assuntos escolares dos filhos pequenos, de 8 e 11 anos.

— A proximidade entre pais e filhos é um efeito positivo desse momento. Tem sido lindo. Mas é cansativo. Tem o homeschooling , e sou um pouco impaciente. É um aprendizado — conta ele, enquanto a filha aparece na tela para dar um oi. — É um momento de celebração da vida familiar e me sinto feliz estando em casa. O que é surpreendente porque sou muito social. Normalmente, quase toda noite, estou em botecos ou cozinhando para amigos.

Por enquanto, ele ainda não encontrou inspiração e sossego para compor na quarentena.

— Não consigo ser compositor, maestro e pai ao mesmo tempo. E, também, o tempo todo escrevo sobre relações, sobre o contato entre a pele das pessoas. Agora, estou quase com pudor de falar sobre isso.

Inédita com Marisa Monte

Mas música inédita tem. Ainda sem nome, ela fala sobre o vento. Foi composta em parceria com Marisa Monte. Os dois estavam em um barco, durante férias com suas famílias na Itália, há dois anos.

Pouco antes de ficar doente, Drexler viajava o mundo com a turnê “Silente”. Estava na Costa Rica para duas apresentações, dias 10 e 11 de março, quando as notícias sobre o coronavírus começavam a se agravar. Havia nove casos confirmados naquele país. Mesmo assim, o governo manteve a autorização para os shows. Drexler chegou a compor uma canção com uma espécie de manual para que o público se cumprimentasse sem correr riscos. Batizada de “Codo con codo” (lado a lado, em português), a música, traduzida, diz: “Os abraços retornarão/ Beijos, dados com calma/ Se você conhece um amigo/ Cumprimente-o com a alma”.

No entanto, poucas horas antes, com o palco todo montado, o compositor, sentindo-se incomodado, teve a presença de espírito de trocar o show por uma live no Facebook e Instagram. Tornou-se pioneiro na onda que se espalharia entre os artistas.

— Foi uma experiência linda, que não dá para descrever. Foi estranha também. Em vez do aplauso, aquela chuva de corações subindo na tela... — comenta. — É como pedalar numa bicicleta sem corrente, que não sai do lugar. Porque fazer show é cansativo energeticamente, e você só se sustenta porque troca com o público. Um concerto é um ato de amor, mas não convidar as pessoas para o teatro também foi. Não me perdoaria se alguém fosse contaminado.

A decisão para evitar o pior, e a agilidade para cancelar o resto da turnê e voltar para a casa, ele atribui ao fato de ser filho de um judeu fugido da Alemanha de Hitler.

— Meu pai me transmitiu essa sensação de fragilidade, de que tudo pode mudar a qualquer momento. O fato de ele ter fugido de uma guerra me fez pensar sempre no pior cenário — conta. — Por isso, saí da Costa Rica rapidamente e cancelei show nos Estados Unidos, que, no dia seguinte, fecharam o espaço aéreo para a Espanha. Mandei meu filho mais velho voltar de Londres, ele pegou o último voo. Quando cheguei em Madri, comprei um oxímetro e um estetoscópio.

A partir daí, a Covid-19 espalhou-se pelo mundo feito rastilho de pólvora.

— Todos os dias sei de um avô ou pai de alguém próximo que faleceu aqui na Espanha — diz. — É difícil para os trabalhadores sem contrato, mas isolamento é fundamental. Todo mundo entendeu, menos presidentes que não acreditam na ciência, são movidos a superstições. A medida é impopular, mas a alternativa é o castigo do vírus nas parcelas mais prejudicadas da população.

Ele cita a canção “Haiti”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e atualiza a letra.

— Quando você for convidado para sair de sua casa/ Pense no Guayaquil...” — cantarola, referindo-se à cidade equatoriana onde o coronavírus tem matado de 200 a 300 pessoas por dia.

A espetada tem endereço certo. Ele classifica a atitude do presidente Jair Bolsonaro, que sugeriu a suspensão do isolamento, como “irresponsável e gravíssima”.

— É ignorância e soberba. Estados Unidos e Inglaterra voltaram atrás. O governo no Uruguai, de centro-direita, tem conduzido bem a situação, estou orgulhoso — diz. — A mensagem que o vírus traz é que somos bichos, parte do organismo vivo que é o planeta. Somos vulneráveis à natureza. É preciso uma atitude diferente com a biosfera. A crise traz o fim das opiniões, o que importa são os fatos, a ciência, a medicina. É um retorno ao conhecimento, à razão. Não estamos esperando um milagre, mas a vacina. Se sairmos dessa com 5% de humildade, terá valido algo.