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Curadora da Flip pede demissão: 'É preciso de uma mulher negra para reinventá-la'

Segundo Fernanda Diamant, a pandemia de Covid-19 e a violência racista fizeram a 'celebração desenhada previamente' perder o sentido
A editora e ex-curadora da Flip Fernanda Diamant Foto: Nino Andres / Divulgação
A editora e ex-curadora da Flip Fernanda Diamant Foto: Nino Andres / Divulgação

SÃO PAULO – A editora Fernanda Diamant não é mais curadora da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Em nota enviada em primeira mão ao GLOBO, Fernanda informou “sua decisão de deixar a curadoria da Flip” e que a festa precisa de “uma curadora negra para reinventá-la nesse mundo pós-pandemia”. “Ao longo de 18 anos, a curadoria da Flip jamais foi ocupada por uma pessoa negra. Passou da hora disso mudar”, escreveu. “Por essa razão, decidi pedir demissão e declarar meu desejo de ceder esse espaço de privilégio de forma pública."

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Fernanda afirmou ainda que planejava que pelo menos metade dos convidados da Flip deste ano fossem autoras e autores negros. Lembrou, inclusive, que "dos cinco autores mais vendidos em Paraty em 2019, quatro são autores negros e um indígena — Grada Kilomba, Ayobami Adebayo, Kalaf Epalanga, Gael Faye e Ailton Krenak".  “Eu já tinha a maior parte dos convites confirmados quando veio a Covid-19. Desde o princípio defendi que não se poderia definir prematuramente uma nova data para o evento. À minha revelia, a Flip foi postergada para novembro”, diz a nota. Em março, a Flip, que estava marcada para ocorrer entre 29 de julho a 2 de agosto, foi adiada para o mês de novembro, mas sem data definida.

Procurada pelo GLOBO, a Flip agradeceu "o brilhante trabalho curatorial de Fernanda Diamant" e afirmou que "a direção artística, em diálogo com o conselho da Flip anunciará a nova curadoria em breve".

'Repensar o próprio evento'

Segundo Fernanda, a pandemia de Covid-19 acelerou a necessidade de repensar a festa literária. "A pandemia se agravou, a condução genocida que o governo federal fez da crise sanitária deixou tudo muito sombrio. Cada vez mais me parecia que a celebração desenhada previamente pertencia a uma outra época e tinha perdido sentido. Não havia nada a ser comemorado. Ainda não há. Era preciso repensar a curadoria e até mesmo o próprio evento — virtual ou não — à luz dos acontecimentos”, diz a nota.

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Curadora em 2018 e 2019

Fernanda ingressou na Flip em 2018 e assinou a curadoria da última edição da festa literária, que homenageou o escritor Euclides da Cunha. No final do ano passado, foi anunciado que a homenageada deste ano seria a poeta americana Elizabeth Bishop, que viveu duas décadas no Brasil. A escolha causou surpresa e a Flip foi duramente criticada por escritores e intelectuais incomodados por algumas declarações de Bishop favoráveis ao golpe militar de 1964.

Em cartas enviadas a amigos americanos, como o poeta Robert Lowell e a crítica literária Anne Stevenson, Bishop defendeu o golpe que derrubou o presidente João Goulart. A Stevenson, ela afirmou “Nunca na minha vida, antes de vir para cá, sonhei por um minuto que algum dia eu gostaria de ver um exército tomar o poder”. A Lowell, ela chamou o golpe de uma “revolução rápida e bonita” e defendeu a suspensão das liberdades democráticas: “tinha que ser feito, por mais sinistro que pareça”.

Defesa da escolha de Bishop

Na nota, Fernanda defendeu a escolha de Bishop: "A ousadia de decidir pela primeira vez por uma estrangeira me pareceu um bom desafio: num momento de fechamento de fronteiras e acirramento de nacionalismos, me parecia ser oportuno olharmos para fora como modo de olharmos também para dentro". Segundo a agora ex-curadora da Flip, “o fato da poeta ser homossexual também pesou”. “Lembrando que o preconceito com a população LGBTQI+ vem num crescente no Brasil. Dentro de minha curadoria, pretendia ressaltar sua biografia multifacetada, trágica e queer.”

Fernanda termina a nota afirmando que a direção da Flip reagiu positivamente a sua sugestão de nomear uma curadora negra. “Sou sinceramente grata a Flip por tudo que pude aprender e criar nesse trabalho, que é acima de tudo coletivo.”

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O anúncio da saída de Fernanda ocorre em meio a um ciclo de homenagens on-line a Bishop realizado pela Flip em parceria com o Sesc São Paulo. Na segunda-feira (10), houve um bate-papo entre o poeta Paulo Henriques Britto, tradutor de Bishop no Brasil, e o poeta americano Lloyd Schwartz, amigo e editor da autora homenageada. Na terça (11), a poeta Alice Sant’Anna, que edita Bishop na Companhia das Letras, conversou com a escritora Marilene Felinto, que, nos anos 1990, escreveu uma série de reportagens sobre a vida da poeta americana no Brasil. O ciclo de homenagens se estende até o dia 21, sempre às 18h30. Nos próximos dias, participam dos bate-papos o escritor Humberto Werneck, o artista plástico José Alberto Nemer, a dramaturga Marta Goes, a atriz Regina Braga e outros. Para assistir aos debates, é preciso se inscrever no site sescsp.org/cpf .

Repercussão

  • Djamila Ribeiro, filósofa e escritora

"Fernanda Diamant entendeu, de forma muito profunda, que lugar de fala é também uma postura ética. É entender, do seu lugar social, a importância da reivindicação histórica de outros grupos. É extremamente importante reinventar a maior festa literária do país em um momento em que autores negros estão na lista de mais vendidos e quebrar o silenciamento histórico."

  • Eliana Alves Cruz, escritora

"Achei realmente bacana a Fernanda entender que a gente tem uma lacuna grande. Não é nem de representatividade, porque não é só o fato de uma pessoa estar lá na Flip. Estar lá não é ter poder. Representatividade não é o mesmo que poder. Às vezes, a pessoa está lá como um totem, uma satisfação que as pessoas querem dar para a sociedade. E essa posição de curadora é sim uma posição de poder. Vai ser muito bonito se acontecer. Temos muitas mulheres capazes de ocupar esse lugar, com muita qualidade."

  • Flavia Oliveira, jornalista e colunista do GLOBO:

"Esse debate surgiu ao fim da Flip do ano passado. Superada a barreira da presença/participação de autores negros, seria a hora de uma curadoria negra, nunca experimentada. Creio ser uma atitude (da Fernanda) bem-vinda, na direção do que defendemos como agenda antirracista. Desejo que as condições de trabalho sejam as mesmas para a curadoria negra, do ponto de vista de autonomia e orçamento."

  • Ana Paula Lisboa, escritora e colunista do GLOBO:

“Para mim a Flip sempre foi um lugar de celebração. Só depois que eu entendi que a celebração ali não era só da literatura, era das próprias pessoas. E era uma celebração sobre o privilégio. De ser na sua maioria homem, branco, rico e letrado, que é o perfil do escritor brasileiro. Durante muitas edições esse privilégio foi questionado. Mas isso nunca foi colocado definitivamente em pauta. Na Flip de 2019, como a Fernanda cita, entre os cinco escritores mais vendidos quatro eram negros e um era indígena, mas os quatro negros eram estrangeiros. Isso mostra também um retrato do Brasil, de que os negros não são publicados. Quando são publicados, onde eles são vendidos? É muito mais fácil ouvir um negro estrangeiro falando do que um brasileiro. Quando a gente fala, parece uma afronta ou como se a gente estivesse querendo criar separações. Para mim, já passou da hora de as pessoas negras ocuparem esses espaços no país. Não só porque elas são pessoas negras, mas porque estão completamente capacitadas para ocupar esses lugares.”

  • Luana Génot, fundadora do Instituto Identidades do Brasil e colunista do GLOBO.

"A curadoria da Flip ser ocupada uma pessoa branca enquanto o evento se diz em desconstrução mostra uma certa assimetria. A atitude da Fernanda é a de alguém consciente de seus privilégios, querendo construir uma sociedade mais igualitária. Antes tarde do que mais tarde. Não se trata só de deixar um espaço, mas de abrir caminhos e para que outras narrativas sejam construídas"

Leia na íntegra a nota de Fernanda Diamant

A Flip é um dos oásis culturais do Brasil. A Festa, cada vez menos elitista em decorrência do aumento das chamadas casas parceiras, concentra discussão de ideias, apoio à leitura e aos livros, divulgação e revelação de autores, encontro entre pessoas, liberdade de expressão, celebração. Desde a curadoria de Josélia Aguiar, o programa principal também passou a ser mais diverso. Há ainda a biblioteca comunitária mantida pela Flip que funciona o ano todo na Ilha das Cobras — uma das áreas mais vulneráveis da cidade de Paraty —, agora ameaçada por falta de recursos.

Em agosto de 2018, aceitei o convite para ser a curadora da Festa da Literatura Internacional de Paraty de 2019. Euclides da Cunha, o autor homenageado, foi uma escolha de comum acordo entre curadoria e direção artística. Dos cinco autores mais vendidos em Paraty em 2019, quatro são autores negros e um indígena — Grada Kilomba, Ayobami Adebayo, Kalaf Epalanga, Gael Faye e  Ailton Krenak. Foi a primeira vez que isso aconteceu. A escritora Marilene Felinto acusou o racismo de Euclides em sua participação, questão que também foi bastante discutida no Ciclo do Autor Homenageado, uma parceria que a Flip faz com o Sesc CPF, e que teve minha curadoria em parceria com a professora Walnice Nogueira Galvão.

A boa recepção da Flip com Euclides da Cunha fez com que o convite para a curadoria se repetisse em 2020. Minha principal exigência para seguir era que a homenageada fosse dessa vez uma mulher. Tendo isso em mente, optamos por homenagear Elizabeth Bishop, novamente uma escolha compartilhada entre curadoria e direção artística (era desejo antigo da Flip homenagear Bishop). A ousadia de decidir pela primeira vez por uma estrangeira me pareceu um bom desafio: num momento de fechamento de fronteiras e acirramento de nacionalismos, me parecia ser oportuno olharmos para fora como modo de olharmos também para dentro. E, ainda, seria uma forma de prestar homenagem também aos grandes tradutores de poesia no país. O Brasil tem uma tradição fortíssima de tradução, que é desconhecida de muitos. Além disso, a própria Bishop verteu poesia brasileira para o inglês, apresentando ao mundo anglófono escritores como Drummond e Clarice Lispector. O fato da poeta ser homossexual também pesou — lembrando que o preconceito com a população LGBTQI+ vem num crescente no Brasil. Dentro de minha curadoria, pretendia ressaltar sua biografia multifacetada, trágica e queer.

Para além da homenagem, eu havia decidido que pelo menos metade dos convidados de 2020 seriam autoras e autores negros, o que também seria inédito. Eu já tinha a maior parte dos convites confirmados quando veio a Covid 19. Desde o princípio defendi que não se poderia definir prematuramente uma nova data para o evento. À minha revelia, a Flip foi postergada para novembro. A pandemia se agravou, a condução  genocida que o governo federal fez da crise sanitária deixou tudo muito sombrio. Cada vez mais me parecia que a celebração desenhada previamente pertencia a uma outra época e tinha perdido sentido. Não havia nada a ser comemorado. Ainda não há. Era preciso repensar a curadoria e até mesmo o próprio evento — virtual ou não — à luz dos acontecimentos.

Ainda, em meio às denúncias crescentes do movimento negro brasileiro, veio o brutal assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, no dia 25 de maio, e a poderosíssima reação impulsionada pelo movimento Black Lives Matter. Esses dias mais intensos de levante antirracista me fizeram entender que precisamos lutar mais ativamente, agir da forma mais contundente possível. Mais que uma programação com autoras e autores negros, a Flip agora precisa de uma curadora negra para reinventá-la nesse mundo pós pandemia. Uma mulher negra, na minha opinião, é a renovação que o evento mais importante da literatura do país precisa. Ao longo de 18 anos, a curadoria da Flip jamais foi ocupada por uma pessoa negra. Passou da hora disso mudar. Como curadora, entendo que é meu papel levar em conta questões artísticas e políticas (sendo que a arte, por sua vez, é sempre política). Por essa razão, decidi pedir demissão e declarar meu desejo de ceder esse espaço de privilégio de forma pública. A direção da Flip reagiu positivamente à minha ideia, o que me deixa esperançosa. Sou sinceramente grata a Flip por tudo que pude aprender e criar nesse trabalho, que é acima de tudo coletivo.