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Cultura

De Chaplin a Fritz Lang: fotos autografadas de estrelas de Hollywood do acervo da Cinédia vão a leilão

Venda incluiu 437 imagens raras de artistas como Marlene Dietrich, Gary Cooper, Maurice Chevalier e Walt Disney
Charles Chaplin em foto dedicada a Adhemar Gonzaga, em 1929 Foto: Divulgação/Cinédia
Charles Chaplin em foto dedicada a Adhemar Gonzaga, em 1929 Foto: Divulgação/Cinédia

RIO — Um dos principais estúdios da história do cinema brasileiro, a Cinédia, criada por Adhemar Gonzaga (1901-1978), completou 90 anos em março. Precisando de recursos para preservar o colossal arquivo de memorabilia colecionado pelo pai, Alice Gonzaga aproveitou a efeméride para pôr em leilão algumas pérolas entre as mais de 300 mil fotografias do acervo.

Programado para os dias 24 e 25 de agosto, o pregão promovido pela Soraia Cals Escritório de Arte reúne 437 fotos autografadas por grandes estrelas do cinema, como Charles Chaplin, Fritz Lang, Ava Gardner, Gary Cooper, Shirley Temple, Walt Disney, Maurice Chevalier e Olivia de Havilland (estrela de “E o vento levou”, morta no último mês ), como noticiou a coluna de Ancelmo Gois .

— Estou separando essas fotografias há dois anos. A ideia inicial era fazer uma exposição sobre os 90 anos da Cinédia, mas após ver o catálogo do leilão da Carmen Miranda, decidi fazer um também — diz Alice, 85, que nunca recebeu apoio privado ou público para cuidar do acervo que mantém na sede da empresa, um casarão do século XIX na Glória.— Estou vendendo para manter o arquivo. Não mexo na parte brasileira, ela é intocável, é meu ganha pão.

A maioria das imagens à venda foram recebidas por Gonzaga quando ele editava a “Cinearte”, revista sobre a sétima arte pioneira no país. Na época, era praxe enviar fotos assinadas como material de promoção, uma estratégia de marketing da Era de Ouro de Hollywood. Ainda que as assinaturas não fossem exatamente das estrelas da telona.

— Muitas dessas fotos vinham autografadas por assessores dos artistas, não eram autênticas. Mas o Gonzaga elaborou um jeito de driblar isso: enviava um correspondente a Hollywood para fazer entrevistas e colher autógrafos dos artistas in loco . E a revista publicava essas imagens como um diferencial. Isso durou a vida toda da “Cinearte”, que foi de 1926 a 1942 — conta Hernani Heffner, pesquisador e conservador-chefe da Cinemateca do MAM de 1999 até semana passada, quando assumiu a gerência da instituição.

Heffner escreveu os textos para o catálogo do leilão (disponível no site soraiacals.com.br a partir de quarta-feira, dia 19).

Do material à venda, uma imagem traz um raríssimo registro do cineasta austríaco Fritz Lang dirigindo uma cena do clássico “Metrópolis” (1927). Em francês e inglês, a dedicatória diz: “Para Adhemar Gonzaga, com todos os meus cumprimentos, e em verdadeira amizade, Fritz Lang”. O valor inicial é de R$ 12 mil.

— Ele tinha essa foto das filmagens guardada desde os anos 1920. Em 1965, o Lang veio ao Brasil para ser jurado do I Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro. E o Gonzaga também era da banca. Eram os dois velhinhos do júri, mas foram eles que defenderam o filme que se tornaria vencedor, “Help” [de Richard Lester] , dos Beatles — conta Heffner, gargalhando.

Chaplin foi outro que deu seu autógrafo pessoalmente a Gonzaga, que testemunhou uma sessão de fotos do lendário Carlitos em 1929. Avaliada em R$ 10 mil, a imagem traz um texto mais contido: “Para A.A. Gonzaga, Charles Chaplin, Hollywood”.

— Esse leilão apresenta um histórico muito grande da relação do Brasil com o cinema — diz Soraia Cals, que realiza o leilão. — É uma coleção ampla com artigos raros de astros e estrelas de Hollywood, todas da primeira metade do século XX. O arquivo é muito bem guardado pela herdeira.

A história de Alice se confunde com a da Cinédia. Seus pais se conheceram quando sua mãe, Didi Vianna, foi atuar em uma produção da companhia, “Lábios sem beijos” (1930), de Humberto Mauro.

— Meu pai era desquitado, foi um escândalo quando eles se juntaram. Eu ajudava meus pais lá desde criança. Durante as férias, cuidava do arquivo — relembra Alice. — Eu ia ver as filmagens, até cenário ajudei a pintar. Convivi com Grande Otelo, Emilinha Borba. Adorava a Dercy Gonçalves, era muito divertida.

De 1930 a 2002, a Cinédia produziu 57 filmes, incluindo clássicos como “Ganga Bruta” (1933), de Humberto Mauro, “Bonequinha de seda” (1936), de Oduvaldo Viana, e “O ébrio” (1946), de Gilda Abreu — alguns clássicos podem ser vistos no serviço de streaming Tamanduá. Grande parte dessa filmografia, porém, está na Cinemateca Brasileira, que nos últimos tempos enfrenta grave crise . O governo federal não renovou o contrato da Associação Roquette Pinto, gestora do órgão, e não repassou o orçamento para 2020.

— Tenho muitos filmes em película na Cinemateca. Penso até em tirá-los de lá. Mas como está tudo digitalizado em HD, não me preocupo muito — afirma Alice.

Segundo Heffner, a empresa foi uma das pioneiras na criação da indústria cinematográfica brasileira.

— É ponto pacífico entre os especialistas que o cinema brasileiro se desenvolve a partir do que o Gonzaga e seus colegas engendraram lá nos anos 1920. Foram os primeiros a divulgar filmes nacionais. Realizaram o sonho de fazer arte com a cara do Brasil — diz Heffner. — O arquivo do estúdio é muito importante. Nem tanto pelo volume, mas pelo valor incalculável como fonte histórica para o cinema brasileiro.