RIO — Um lhe deu guarida em Roma, em 1970, depois de a casa em que vivia no Rio com Mané Garrincha ter sido metralhada. O outro estendeu a mão no momento mais desesperador da sua vida, nos anos 1980, quando ela pensou mesmo em abandonar a carreira de cantora. Com Chico Buarque e Caetano Veloso, Elza Soares tem uma relação estreita, que vai muito além das canções. E deles recebe homenagens públicas, muito ternas e sinceras, pelo seu aniversário de 90 anos, comemorado no ano passado. Na próxima edição de sua revista, programada para a primeira quinzena de fevereiro, a União Brasileira dos Compositores (UBC) publica textos de Chico e de Caetano sobre a cantora, que o GLOBO antecipa com exclusividade (leia abaixo).
— Elza é uma força transgressora da natureza. Sua voz abriu corredores de esperança para muitas mulheres, artistas ou não. Chegou antes e para sempre. É uma intérprete visceralmente autoral, de qualidade internacional. Uma voz que inspira e respira o amanhã. Uma provocação irresistível de futuro melhor — diz Marcelo Castelo Branco, diretor executivo da UBC.
De 'Meu Guri' a 'Língua': Relembre as canções de Caetano e Chico na voz de Elza
Em 2015, Elza deu mais uma volta por cima com o álbum “A mulher do fim do mundo”. Ao longo de 2020, a cantora não sossegou e lançou uma música atrás da outra, sempre em consonância com suas convicções e com sua vontade de estar com artistas mais jovens: vieram, assim, a regravação em ritmo de rock industrial de “Juízo final” (samba de Nelson Cavaquinho), a inédita “Negão negra” e “Divino maravilhoso” (ambas com o rapper Flávio Renegado) e “A coisa tá preta” (com MC Rebecca), além de uma nova versão de “Comida”, dos Titãs (com o grupo). “Se eu não lutar por essas coisas, que são minhas, que são a minha vida, que falam dos meus sacrifícios, das minhas perdas, quem vai lutar?”, perguntou-se Elza, em entrevista à revista da UBC.
A pandemia de Covid-19, no entanto, impediu que a cantora subisse aos palcos em 2020 e adiou muitas das comemorações do seu aniversário. Na busca por uma forma, justa e emocionante, de homenageá-la, a reportagem da revista a provocou a citar as figuras mais importantes de sua trajetória. Não pensou duas vezes: Chico Buarque e Caetano Veloso.
No fim dos anos 1960, condenada por boa parte da opinião pública por viver com um homem casado, a cantora teve sua casa atacada por atiradores. Um convite de trabalho a levou, com os filhos e Garrincha, para Roma, onde Chico vivia o exílio político com a família — e não demorou para que todos se afeiçoassem. “A Marieta ( Severo, então mulher de Chico ) era meu ombro amigo, sempre me dando ouvidos’’, disse ela em “Elza” (2018), biografia assinada pelo jornalista Zeca Camargo.
Com Caetano, os caminhos se cruzaram quando, destroçada pela morte de Garrincha e sem shows, cogitou parar de cantar e trabalhar numa creche. O encontro foi em São Paulo, num quarto de hotel. Segundo ela, o cantor lhe deu um longo abraço, pediu que ela se sentasse e a acalmou. Dias depois, a convidou para um show de Gilberto Gil e, no camarim, disse que tinha uma canção inédita e queria gravá-la com ela. Assim nasceu “Língua”.
Leia os textos de Chico e Caetano na íntegra abaixo:
"Nunca houve ou haverá uma mulher como ela", por Chico Buarque
Se acaso você chegasse a um bairro residencial de Roma e desse com uma pelada de meninos brasileiros no meio da rua, não teria dúvida: ali morava Elza Soares com Garrincha, mais uma penca de filhos e afilhados trazidos do Rio em 1969. Aplaudida de pé no Teatro Sistina, dias mais tarde Elza alugou um apartamento na cidade e foi ficando, ficando e ficando.
Se acaso você chegasse ao Teatro Record em 1968 e fosse apresentado a Elza Soares, ficaria mudo. E ficaria besta quando ela soltasse uma gargalhada e cantasse assim: “Elza desatinou, viu.”
Se acaso você chegasse a Londres em 1999 e visse Elza Soares entrar no Royal Albert Hall em cadeira de rodas, não acreditaria que ela pudesse subir ao palco. Subiu e sambou “de maillot apertadíssimo e semi-transparente”, nas palavras de um jornalista português.
Se acaso você chegasse ao Canecão em 2002 e visse Elza Soares cantar que a carne mais barata do mercado é a carne negra, ficaria arrepiado. Tanto quanto anos antes, ao ouvi-la em “Língua’’ com Caetano.
Se acaso você chegasse a uma estação de metrô em Paris e ouvisse alguém às suas costas cantar Elza desatinou, pensaria que estava sonhando. Mas era Elza Soares nos anos 80, apresentando seu jovem manager e os novos olhos cor de esmeralda.
Se acaso você chegasse a 1959 e ouvisse no rádio aquela voz cantando “Se acaso você chegasse’’, saberia que nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza Soares.
"Seu brilho é a prova de que o Brasil não é mole não", por Caetano Veloso
Elza Soares é uma das maiores maravilhas que o Brasil já produziu. Quando apareceu cantando no rádio, era um espanto de musicalidade. Logo ficaríamos sabendo que ela vinha de uma favela e desenvolvera seu estilo rico desde o âmago da pobreza.
Ela cresceu, brilhou, quis sumir, não deixei, ela voltou, seguiu e prova sempre, desde a gravação de “Se acaso você chegasse’’ até os discos produzidos em São Paulo por jovens atentos, que o Brasil não é mole não.
Celebrar os 90 anos e Elza é celebrar a energia luminosa que os tronchos monstros não conseguirão apagar da essência do Brasil.