Exclusivo para Assinantes
Cultura

De youtuber a militante: autores imaginam o Menino Maluquinho em sua versão adulta

Personagem de Ziraldo 'nascido' há 40 anos chega à meia-idade e segue inspirando novas gerações
O Menino Maluquinho adulto, no traço de Roger Mello Foto: Roger Mello / Divulgação
O Menino Maluquinho adulto, no traço de Roger Mello Foto: Roger Mello / Divulgação

RIO — Na obra de Ziraldo publicada pela primeira vez em 1980, o Menino Maluquinho vira um adulto legal. Mais do que isso: "o cara mais legal do mundo". Mas será mesmo? Quarenta anos após a sua criação, como seria o Adulto Maluquinho vivendo no Brasil de hoje?

A pedido do GLOBO, cinco autores reimaginam o personagem em sua versão quarentona. Na visão de nomes como Roger Mello, que ilustrou esta página, o ex-moleque não bate panelas, às vezes é um pouco triste, mas luta pelo bem.

40 anos do Menino Maluquinho: Personagem de Ziraldo ganha edição comemorativa recheada de extras

Guilherme  Gontijo Flores

Escritor e tradutor, autor de "História de Joia"

Agora é nome completo e sobrenome, diminutivo resta só pros seus afetos fortes; anda preocupado com a segunda via do RG e da carteira de motorista (eita, perdidas numa esquina desta vida desatenta), que em tempos de quarentena complicou foi muito, ainda mais no zero-tempo entre trabalho oficial, biscate, criança, um ou outro estudo que pinta, isso tudo que andam por aí chamando vida e que ele bem aceita. É uma canseira; mas, sabe, tem a graça de ver panelas nas cabeças dos novos pequenos, os próprios e os alheios, das meninas que inventam furacão nas casas, até que nada fique no lugar, o que volta a dar trabalho etc — espiralando. É mesmo uma canseira. Tem dia que é de largar tudo, só que não larga: a maluquice mesmo é bem dos outros, hoje. O que fica, no fundo do fundo, no cantinho do resto sobrado de cada dia, é um troço que vem de quina, invade a íris do olho e brilha, brilha. Tem dia que é lágrima que apaga incêndio fora e dentro; tem dia que não apaga nada do que vê lá fora. E não, nem ele mesmo vê, que não coincide com o pouco tempo diário de espelho. Mas ali, quando surge, brilha, brilha, quase como dantes. E não é cisco, não. É um corisco interno, que sempre amplia o mundo, menor que seja. E brilha, brilha.

'A alma perdida': Obra de Nobel da Literatura é convite que leva crianças (e adultos) a pensarem na vida

Samuel Gomes

Escritor e apresentador do canal "Guardei no armário"

O Menino Maluquinho entrou já mais velho no YouTube fazendo vídeos de banheira de Nutella, challenges e vários outros escatológicos que viralizavam fácil. Em alguns momentos sua postura foi questionada e colocada à prova, mas pudemos acompanhar sua mudança ao vivo durante um regime autocrático fascista. Hoje, com 40 anos, ele se tornou uma das vozes mais influentes do Brasil, com um canal que alcança milhões, e tem se posicionado fortemente contra o regime e defendido uma democracia popular. O Menino Maluquinho hoje luta contra a desigualdade e combate as diversas formas de opressão.

Cristiane Sobral

Poeta e dramaturga, autora de "Terra Negra" (2019)

O menino maluquinho ainda transforma a ordem sem fazer desordem. Viva! Ele completou 40 voltas em torno do sol. Há tempos adaptou a panela que levava na cabeça e criou um artefato tecnológico para viajar entre mundos e mudar realidades. Sua cuia capacete tem botões para curar masculinidades tóxicas, música para aeroportos, inaladores com óleos essenciais de cura e até máquina de fazer dinheiro. Mas vejam, senhores e senhoras. Ele não bate em panelas, porque entende o poder sagrado que habita nas cabeças. Poliglota dos sentidos, ainda brincalhão, segue na luta para não deixar morrer a sua maior riqueza. A infância. Ele não é bobo. Sabe que o tempo é o senhor das verdades.

Olga Tokarczuk: 'Mulheres e animais são sempre assuntos subversivos', diz vencedora do Nobel de 2018

Roger Mello

Escritor e ilustrador, autor de "Selvagem" (2010)

Ai, menino, que coisa doida te ver aqui. Disseram mesmo que você viria, a calça rasgada no joelho, eu sei, você não paga por roupa de grife já puída de fábrica. É rasgo de quem ainda cai de árvore, de quem finalmente entendeu a coisa de ter macaquinhos no sótão e as pernas maiores que o mundo. Menino, rapaz, fazem o quê? Quarenta anos?

Mais que a idade do seu pai quando o Ziraldo te desenhou no papel. E a Vilma disse que gostou de ver um filho feito de tinta preta. Você ficou mais alto que os outros, justo você, o mais maluquinho, o mais bonitinho da turma. Sua panela-chapéu apita quando uma ideia vem, uma panela bluetooth que conversa com o celular. Agora confessa, caiu de um pé de quê? De fruta-pão? Lembra o Ziraldo falando pra gente que trouxeram a fruta-pão e espalharam pelo mundo para matar a fome? É que precisamos de gente como a gente dele, o Darcy, a Maria Martins, o Burle Marx, o Joel Rufino. Gente que sabia de frutas, mapas e assombrações. Gente que sonhava o país como quem esboça um livro. Fomos ficando enviesados, né, menino? Tristes mesmo. Como uma calça puída que custa uma nota mas não vale tostão. Bora, Maluquinho, o resto da turma está esperando a gente se manifestar.

Entenda: Por que tantos vencedores do Nobel não têm livros publicados no Brasil ?

Jessé Andarilho

Autor de "Efetivo variável"

Hoje ele tem quarenta anos

Faz trabalhos sociais e vive nas favelas

Ainda é chamado de maluquinho

Mas sua vizinhança no prédio é que bate panelas.

Iris Figueiredo

Autora de "Céu sem estrelas" (2018)

O Menino Maluquinho já não é mais menino. Sem panela na cabeça, ele só as usa pra cozinhar. Não que tenha perdido o gosto pelo excêntrico que carregava da infância, mas é que hoje em dia, excêntrico é usar as coisas para o que elas foram feitas. Por exemplo, máscaras cobrindo o nariz e a boca. Volta e meia vê alguém com capacete no cotovelo, e ele nem entende bem. O Menino Maluquinho deixou de ser menino há um bom tempo, mas ainda sorri quando lembra do seu apelido. Hoje, passa horas na frente do computador falando com um monte de gente do outro lado. Trabalha até tarde e nos fins de semana, mas tem quem pergunte se ele trabalha — afinal de contas, o que um professor está fazendo em casa em plena pandemia? Ele se lembra da sua própria professora maluquinha, e sorri toda vez que um aluno dá um jeito de desenhar ao lado da tarefa de casa. Fica à procura dos alunos com panelas na cabeça e torce para que o mundo em que eles vão viver seja um pouco mais maluquinho (e não desprovido de sentido).