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Cultura

Deborah Colker: 'Curar é se aproximar da dor do outro'

Inspirado na luta contra a doença do neto, espetáculo que coreógrafa prepara para estrear após pandemia parece feito sob medida para o momento atual, ao criar uma ponte entre ciência e fé
Deborah Colker cria o espetáculo Cura Foto: Cafi / Divulgação/2017
Deborah Colker cria o espetáculo Cura Foto: Cafi / Divulgação/2017

Cura. Esse é o nome do próximo espetáculo de Deborah Colker. O trabalho é inspirado na luta da coreógrafa contra a doença rara de seu neto Theo, de 10 anos. Ele sofre de epidermólise bolhosa, que provoca feridas na pele ao menor atrito. O projeto nasceu da indignação de uma avó diante do que não tem cura (“não conseguia suportar essa informação”, ela diz). Numa coincidência terrível, a obra agora também dialoga com a tragédia global da Covid-19, para a qual ainda não criaram remédio nem vacina.

— Fiquei impressionada quando a doença se espalhou, pensei muito no espetáculo, é inevitável o cruzamento. Falo de uma cura que não é a do vírus, mas a pandemia também nos coloca diante do respeito à ciência, à natureza, à saúde. Nos aproxima da solidariedade, da reflexão — analisa ela, que ensaia on-line com sua companhia e disponibilizou antigos espetáculos em seu site para as pessoas assistirem durante a quarentena.

Há ainda uma terceira sincronia entre o tema do novo trabalho e acontecimentos recentes. Deborah acaba de passar por uma experiência de cura. No mês passado, ela contraiu sarampo de um de seus bailarinos. Ficou internada por quatro dias.

— Foi brabo, a doença me quebrou toda, fígado, olhos, cabeça, estômago, levei dez dias para me recuperar — conta a coreógrafa, de 59 anos.

Quando “voltou ao planeta”, ela deu de cara com tudo de cabeça para baixo por causa do coronavírus e das medidas de isolamento adotadas para evitar sua expansão. Até o patrocínio que o Bradesco prometeu para sua companhia ficou à espera de assinatura.

Em “Cura”, ela faz uma ponte entre a ciência e a fé, “entre aceitar e lutar, entre o amor e a genética”. Para construir essa narrativa, tem ouvido, há dois anos, pensadores, cientistas e religiosos. O rabino Nilton Bonder, por exemplo, é um intenso colaborador.

— O indivíduo tem quatro planos: físico, emocional, intelectual e espiritual, e buscar este inteiro é a busca da vida. Comecei a procurar a cura sem unir esses quatro planos — conta Deborah, lembrando ainda que a ciência é o instrumento fundamental da cura, e um país que não respeita seus cientistas não tem nem presente e nem futuro.

Mas e a dor? A pergunta norteou uma pesquisa de campo em que a coreógrafa investigou como diferentes culturas e religiões lidam com o sofrimento. Foi a Moçambique, na África, experimentar danças de cura. E ficou tão impressionada que acabou trazendo cantores e bailarinos para uma residência de três meses na companhia.

Deborah Colker em Moçambique em pesquisa para o espetáculo Cura Foto: arquivo pessoal
Deborah Colker em Moçambique em pesquisa para o espetáculo Cura Foto: arquivo pessoal

— Fui buscar nos índios, nos africanos, em suas danças, cantos e rezas, em Leonard Cohen e sua poesia, nos salmos e nos cantos sufis as palavras que potencializam a cura. Encontrei munição para lutar — afirma. — A ciência e a fé são corajosas, incansáveis e destemidas. As duas formam uma boa parceria. Há momentos de luta, de guerra, e há momentos de paciência e resignação.

Deborah Colker pratica dança de cura na África Foto: Arquivo pessoal
Deborah Colker pratica dança de cura na África Foto: Arquivo pessoal

Ela visitou também terreiros de candomblé em Salvador. E se emocionou com o mito iorubá de Obaluaê. Filho de Nanã e Oxalá, ele nasce com o corpo cheio de feridas e é abandonado pela mãe à beira-mar. Iemanjá, então, o adota e o protege com uma roupa de palha sagrada que cobre todo o seu corpo. A experiência reforçou uma convicção que Deborah já trazia consigo fazia tempo:

— A dor pode ser curada através do amor. Curar é se aproximar da dor do outro. Como o pai de um menino autista que embala o filho no balanço. Fazem parte da natureza as mutações, os erros, as deficiências, e elas precisam ser incorporadas, compreendidas e respeitadas. A sociedade necessita dessas raridades para evoluir. O que é normal? O que é o avesso? O que está certo? É preciso quebrar padrões e aumentar a tolerância. Curar a ignorância, a discriminação.

Som de Carlinhos Brown

Para Deborah, o preconceito é um dos principais obstáculos. Não foram poucas as vezes em que sua família teve que lutar contra ele. Numa das situações mais doloridas, Theo quase foi impedido de viajar de avião por causa da doença, que não é contagiosa.

— O preconceito é que é. Difícil encontrar palavras para descrever o sofrimento, a dor e a raiva que sentimos. Eu tentando disfarçar, brincando com o Theo. Minha filha ( Clara, mãe de Theo ) diz que conhece bem o isolamento, quando eles não vão à praia, aos parques, às festas e até à escola. Vivemos o isolamento há dez anos — conta. —Esse vírus precisa de isolamento, mas o Theo, não. Acha que ele não precisa de um abraço?

Deborah diz que chegou a pensar até em batizar o espetáculo de “Guerra”, porque não quer ceder nessa luta “contra a ignorância e a discriminação, que são o pior contágio”. Mas acabou indo por outro caminho.

Parceiro dela na jornada, Carlinhos Brown assina a trilha sonora do espetáculo. A dupla, aliás, lança amanhã um vídeo embalado pela primeira canção composta para “Cura”. O nome? “Dor”. Brown conta que a inspiração veio após ter sido tomado por uma grande emoção ao assistir a um ensaio.

— Sempre gostei de trabalhar a música como visão da cura. Sou percussionista e estou ligado a uma música ancestral, que utiliza os tambores como frequência de cura e ligação ao inconsciente coletivo. Os tambores falam a linguagem de Deus entre o céu e a terra — diz ele. — Encontrei a cura de que estava precisando para essa música com os movimentos de Deborah. A mensagem é que somos mais fortes que a nossa dor. Se tivermos a segurança de sobreviver agora, o resultado é nos amarmos mais.

Quando Deborah voltou da África, onde praticou as danças embaladas por tambores, Nilton Bonder perguntou se ela havia encontrado a cura que procurava. A resposta? “Não, mas encontrei um antídoto: a alegria”. Este é o nome da coreografia que irá encerrar o espetáculo, previsto para chegar aos palcos em algum momento depois que tudo isso passar.