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Cultura literatura

Diamela Eltit: 'Para mim, a literatura é um território de liberdade, que não está sujeito às demandas do mercado'

Autora chilena, que lança novo romance no Brasil, diz olhar com cautela a emancipação feminina e comenta a nova Constituinte em seu país
A escritora Diamela Eltit: “A juventude chilena se identifica com os mapuches. Nos protestos de 2019, víamos mais bandeiras mapuches do que chilenas” Foto: Divulgação
A escritora Diamela Eltit: “A juventude chilena se identifica com os mapuches. Nos protestos de 2019, víamos mais bandeiras mapuches do que chilenas” Foto: Divulgação

A escritora chilena Diamela Eltit ainda se recorda de que “não havia noite” durante boa parte de sua juventude. Ela contava 26 anos recém-completos quando um golpe militar derrubou o governo socialista de Salvador Allende. A ditadura do general Augusto Pinochet baixou um toque de recolher que se estendeu até o final do regime, em 1990, e impediu uma geração inteira de sair à noite para zanzar pelos bares, jogar boliche ou dançar. Diamela permaneceu no país durante o período, dando aulas de literatura em colégios e universidades e temendo que os alunos a denunciassem aos órgãos de repressão se indicasse a leitura de algum autor reprovado pelo regime. O autoritarismo a forçou ao que ela chama de “inxílio”, um exílio interior.

Como não havia espaço para luta política, enveredou pela arte. Ao lado de um poeta, um sociólogo e dois artistas visuais, fundou o CADA (Colectivo de Acciones de Arte), que fazia intervenções nas ruas da cidade. Paralelamente, Diamela começou a escrever e publicar por pequenas editoras indiferentes aos humores do mercado leitor, o que lhe permitiu exercitar sua escrita aliando experimentalismo literário e afiada crítica política.

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Autora de mais 20 livros de ficção e ensaios, ela está lançando no Brasil o romance “Forças especiais” (Relicário), seu terceiro título no país — a coletânea de ensaios “A máquina de Pinochet”, pela e-galáxia, e a ficção “Jamais o fogo nunca”, também pela Relicário, saíram em 2017, quando ela participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) . Com fama de “impenetrável” por sua escrita experimental, Diamela se defende argumentando que nem a realidade nem a linguagem usada para representá-la são “transparentes”.

— Para mim, a literatura é um território de liberdade, que não está sujeito às demandas pedagógicas ou de mercado. Se há, eventualmente, zonas de não liberdade, elas vêm de minhas próprias limitações — explica Diamela ao GLOBO, numa conversa por vídeo. — A literatura também é um trabalho político de ampliar os espaços, trazer o que está às margens para o centro.

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“Forças especiais”, cujo título se refere aos carabineiros, destacamento da polícia chilena responsável por reprimir protestos e conhecido por sua brutalidade, é narrado por uma jovem que habita um “bloco”, um conjunto habitacional depauperado na periferia de Santiago, onde os moradores são vítimas frequentes da violência policial. A literatura de Diamela tem um interesse especial por zonas de exclusão, como as “poblaciones”, as comunidades periféricas chilenas. Para escrever “Forças especiais”, ela diz ter transformado a si própria num “bloco”. Antes, ela já havia se metamorfoseado em militante para escrever “Jamais o fogo nunca”, que investiga o vazio que tomou conta de seus companheiros de geração depois que o projeto político a que eles dedicaram suas vidas, o socialismo chileno, foi derrotado junto com o governo Allende.

Os dois romances de Diamela publicados no Brasil foram traduzidos pelo escritor Julián Fuks , ele próprio filho de militantes que se exilaram aqui durante a ditadura argentina. Fuks elogia a “inquietude” política e estética de Diamela, que “não se acomoda numa forma específica”.

— É grande sua atenção ao presente político, às instabilidades tão próprias da América Latina. Por exigir de si mesma sempre uma forma nova de contemplar o mundo e narrá-lo, ela oferece aos leitores uma obra rica e imprevisível, rigorosa em seus preceitos e ao mesmo tempo aberta ao incompreendido — diz o autor de “A resistência” .

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Diamela afirma que a principal lição tirada de sua militância no CADA foi a importância de se estabelecer uma “comunidade artística” capaz de romper com todos os binarismos, como, por exemplo, a separação entre “literatura” e “literatura feminina”. Ela já criticou publicamente a ausência de mulheres no “boom latino-americano”, que apresentou ao mundo autores como Cortázar , García Márquez e Vargas Llosa . Embora comemore o sucesso internacional de jovens escritoras latinas, como Mariana Enriquez, Samanta Schweblin e Pilar Quintana , Diamela olha o movimento com uma cautela política.

— Temos que ver se não trata de mais uma operação do mercado para se apoderar da emancipação feminina e, paralelamente, perguntar por que não há avanços em outros campos — diz. — A matança de mulheres só aumenta. Em todo o Ocidente, ainda ganhamos menos que os homens na mesma função. Se ganhamos menos, é porque, para o sistema, valemos menos.

‘Há muita tensão’

A cautela de Diamela também aparece quando ela comenta a Constituinte que, no último domingo, começou a discutir a nova constituição chilena, que irá substituir a carta escrita sob a ditadura de Pinochet. A Constituinte tem paridade de gênero, representação dos povos originários e é presidida por Elisa Loncón, uma indígena mapuche , povo que resistiu à colonização espanhola e vive no Sul do país.

— A juventude chilena se identifica com os mapuches. Nos protestos de 2019, víamos mais bandeiras mapuches do que chilenas — afirma Diamela. — A nova Constituição deve ampliar o poder do Estado, que hoje só intervém naquilo que não interessa ao mercado. Estamos vivendo um período muito interessante, mas há muita tensão entre as diversas forças constituintes. Temos que esperar para ver como toda essa tensão vai se resolver.

Serviço:

“Forças especiais”

Autora: Diamela Eltit. Editora: Relicário. Tradução: Julián Fuks. Páginas: 156. Preço: R$ 52,90.

Capa de "Forças especiais", romance da escritora chilena Diamela Eltit publicado pela Relicário Foto: Reprodução / Divulgaçãp
Capa de "Forças especiais", romance da escritora chilena Diamela Eltit publicado pela Relicário Foto: Reprodução / Divulgaçãp