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Cultura

'Dilema das redes' expõe como nossa atenção é capturada na internet

Domínio dos algoritmos do Vale do Silício sobre a nossa atenção na internet assusta ao ter seus efeitos nocivos expostos em documentários, livros e estudos acadêmicos; especialistas discutem como chegamos a esse ponto
Estudos mostram que a atividade digital está afetando áreas dos nossos cérebros ligadas a atenção, memória, e até mesmo a nossa capacidade de associar nomes e rostos Foto: Arte Felipe Nadaes / O Globo
Estudos mostram que a atividade digital está afetando áreas dos nossos cérebros ligadas a atenção, memória, e até mesmo a nossa capacidade de associar nomes e rostos Foto: Arte Felipe Nadaes / O Globo

A atriz Juliana Paes perdeu o sono depois de assistir, semana passada, a “O dilema das redes” , documentário da Netflix em que nomes influentes do Vale do Silício expõem os perigos ocultos no Facebook, YouTube e outras plataformas que eles mesmos ajudaram a criar.

— É muito assustador ouvir os depoimentos das pessoas que trabalharam lá por tanto tempo construindo coisas que fazem você ficar viciada — espantou-se a atriz. — Uma frase me marcou: “ Quando você não sabe qual é o produto, é porque você é o produto .”

A angústia não é só dela: o desconforto com os efeitos nocivos das mídias sociais atinge celebridades, pessoas comuns e especialistas. Um grande número de estudos acadêmicos, filmes e livros sobre o tema tem sido publicado nos últimos anos. São lentes que ajudam a enxergar além das bolhas programáticas em que caímos ao entregar nossos dados e hábitos ao TikTok ou Instagram.

Livros,  filmes e atitudes: Como evitar os efeitos nocivos das mídias sociais

Um estudo de 2019 — na verdade, uma compilação de diversas pesquisas de universidades como Oxford, Harvard, King’s College, Western City University e Manchester University, publicada na revista “World Psychiatry” — concluiu que a atividade digital está literalmente modificando nossos cérebros, em especial em regiões ligadas a atenção, memória, e até mesmo a nossa capacidade de associar nomes e rostos. Quanto mais aumentamos o foco, melhor vemos que os dilemas do ciberespaço extrapolam — e muito — os algoritmos das redes sociais. E vêm de longe.

— Não fazia sentido regular, lá na década de 1990, como as redes sociais deveriam ser criadas. Era uma inovação — lembra Silvio Meira , professor emérito do Centro de Informática da UFPE e fundador e presidente do Conselho de Administração do Porto Digital, em Recife. — Por outro lado, não fez sentido deixá-las evoluir sem que se demandasse um conjunto de padrões abertos que levasse à interoperabilidade entre elas.

Especialmente num lugar como o Brasil atual, onde a maior parte das pessoas se conecta à internet por celulares. Nesses telefones, muitas vezes navegar se restringe ao Facebook e ao WhatsApp, oferecidos gratuitamente pelas operadoras. Essa “internet 0800”, segundo Meira, “reforçou as bolhas sociais” para boa parte da população.

— A internet foi pensada para ser uma rede de redes; o próprio nome INTERnet vem daí. Hoje, é cada vez mais uma rede de silos, isolados, quase únicos em suas geografias. Nas discussões sobre o Marco Civil da Internet, há mais de meia década, estava claro que essa iria ser uma das formas de driblar o princípio da neutralidade de rede. Resultado? Dados “patrocinados” são componentes muito usados nos modelos de negócios digitais no país hoje — diz o professor.

Proposta em 2009, a lei do Marco Civil da Internet foi sancionada em 2014. O advogado Ronaldo Lemos , especialista em tecnologia, mídia e propriedade intelectual, foi um de seus formuladores. Seis anos depois, ele avalia que o Brasil ainda possui lacunas “gigantescas” em conectividade:

— Essa tarefa cabe ao poder público em parceria com o setor privado. É preciso fomentar conectividade universal ilimitada e barata. O 5G, por exemplo, é uma oportunidade de ampliar o acesso. Mas precisa ser bem aproveitado e desenhado do ponto de vista regulatório para isso — aponta Lemos.

Entrevista com Ronaldo Lemos : Os dilemas das redes são similares no Oriente

Resistência

Em Heliópolis, maior bairro de São Paulo, com um milhão de metros quadrados e 200 mil habitantes, os pesquisadores do projeto De Olho na Quebrada não vão esperar o 5G. Há dois anos, eles coletam dados de uma população que tem pouco acesso digital além da “internet 0800”. Mas, em vez de lucro, transformam essa informação em conhecimento e compartilham com a comunidade via WhatsApp, Facebook e Instagram. Melhor informada, a população já cobra por melhorias.

'O dilema das redes': mídias sociais ajudaram a criar geração ansiosa e deprimida

— Aqui, de um jeito ou de outro, todo mundo tem um celular. É lá (no Facebook) que as pessoas estão. Então é lá que a gente tem que estar — ensina João Victor da Cruz, estudante de Biomedicina e pesquisador do Observatório.

Bem longe dali, em Lençóis, cidade baiana com apenas dez mil moradores, o ponto de cultura Grãos de Luz e Griô usa o WhatsApp como sala de aula desde 2014, num pré-vestibular com links do YouTube, exercícios em PDF e dúvidas tiradas no privado com os professores. A cidade, hoje, já tem muito mais jovens universitários.

— O uso das redes permite que estes grupos, em áreas urbanas e rurais, disputem um espaço que antes talvez não fosse tão fácil disputar. É um elemento central para eles — constata Livia Salles, analista de Programas da organização internacional ActionAid, que dá suporte a projetos como os de Heliópolis e Lençóis.

Bye-bye: Usuários repensam presença em redes sociais após vazamentos de dados, polarização e fake news

Ou seja: no “mundo real” é difícil ficar longe do virtual. E o problema não é apenas o (ab)uso comercial de nossos dados. Os algoritmos também roubam nossa atenção, e os sintomas são bem visíveis. A última pesquisa “Retratos da Leitura” mostra que o Brasil perdeu 4,6 milhões de leitores entre 2015 e 2019, enquanto 49% dos americanos passaram a ouvir menos discos completos entre 2014 e 2019, segundo estudo da plataforma de streaming Deezer.

Semana passada, depois de assistir a “O dilema das redes”, o jornalista Bruno Torturra , editor-chefe do “Greg News” (HBO), escreveu uma thread no Twitter com algumas críticas ao documentário — especialmente à visão de que o Vale do Silício tem condições éticas de resolver os diversos problemas que nos afetam hoje, como a falta de atenção, exacerbada pela pandemia:

Entrevista com Bruno Torturra : 'Só uma sociedade sem fé na sociedade escolheria o Facebook no lugar da web'

— A radicalização dos encontros virtuais, a rede social como mediador definitivo entre minha casa e o mundo externo detonou de vez meu foco — diz Bruno. Para ele, a boa vontade dos engenheiros da Califórnia não é suficiente.

— Não temos poder real sobre essa esfera que se traveste de pública, de livre. Mas não passa de um feudo estruturalmente imutável por quem vive e depende dele. Então quando deixamos de lado esse debate proposto pela comunidade do software livre, estamos justamente abandonando a fronteira mais importante da democracia: a transposição da cidadania do mundo físico para o mundo digital. É aí que eu acho que o filme erra feio. (Colaborou Pedro Willmersdorf)