Exclusivo para Assinantes
Cultura

Dilema das redes: 'Somos usuários ou usados por elas?', questiona Ramesh Srinivasan

Pesquisador, conselheiro de Joe Biden e autor de livro sobre inovações tecnológicas fora do Vale do Silício defende ‘direitos humanos digitais’ e a ‘soberania dos dados’
O pesquisador Ramesh Srinivasan: "Ninguém deve sentir culpa por usar a tecnologia"
Foto: Ivo Näpflin / Creative Commons
O pesquisador Ramesh Srinivasan: "Ninguém deve sentir culpa por usar a tecnologia" Foto: Ivo Näpflin / Creative Commons

SÃO PAULO — Para Ramesh Srinivasan, pesquisador do Laboratório de Cultura Digital e professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), filmes como “O dilema das redes”, da Netflix , mostram o buraco onde nas novas tecnologias nos enfiaram sem nos indicar como sair dele. No documentário, altos funcionários de gigantes do Vale do Silício, como o Google e o Facebook, ensaiaram uma autocrítica, mas as big techs não parecem dispostas a repensar modelos de negócios que dependem da monetização dos dados de usuários incapazes de desgrudar os olhos das telas.

'O dilema das redes': mídias sociais ajudaram a criar geração ansiosa e deprimida

Defensor dos “direitos humanos digitais”, Srinivasan é conselheiro de Joe Biden, candidato democrata à presidência dos Estados Unidos. No livro “Beyond the Valley” (Além do vale), inédito no Brasil, ele apresenta exemplos de inovação tecnológica em comunidades tradicionais na América Latina e na África.

Do interior do México e com acesso precário à internet, Srinivasan conversou com o GLOBO por chamada de WhatsApp, deu novos significados a palavras como “inovação” e “disruptivo” e afirmou que ninguém deve sentir culpa por não largar as redes sociais.

Bye-bye: Usuários repensam presença em redes sociais após vazamentos de dados, polarização e fake news

Podemos confiar que as grandes empresas de tecnologia vão consertar os estragos que fizeram?

Só se eles nos disserem claramente quais transformações estão dispostos a fazer. É óbvio que não vão fazer isso porque o sistema está funcionando para eles. São as empresas mais valiosas da história. O objetivo das big techs é o mesmo de qualquer programa de TV: manter a atenção do público pelo maior tempo possível. Quanto maior a atenção do usuário, mais dados elas obtêm e melhor conseguem prever comportamentos futuros. Há poucas evidências de que o Vale do Silício vai explorar outros modelos de negócio.

Gabeira: Documentário é assustador mesmo para mim, que acompanho o tema

O que fazer, então? Pouca gente pode ser dar ao luxo de deletar as redes sociais...

Ninguém deve sentir culpa por usar a tecnologia. O mundo é o que é e ficar se cobrando não vai mudar nada. Nas nossas bolhas, tudo parece personalizado, mas devemos perguntar: é personalizado para nós ou para as big techs? Somos nós que fazemos pesquisas no Google ou o Google que faz pesquisa com a gente? Somos usuários das redes sociais ou estamos sendo usados por elas?

Qual a sua dieta digital?

Checo as redes sociais uma ou duas vezes ao dia. Tenho usado mais o Twitter por causa da campanha presidencial. Estou no Facebook e acesso o YouTube para ver shows. Sei que o que aparece para mim nas redes sociais tem o objetivo de me manter engajado e não atender aos meus interesses. Se acharmos que as redes sociais nos apresentam o mundo tal qual ele é, estamos encrencados. Por isso, precisamos de mais regulação e de alfabetização digital desde o Jardim de Infância.

O que são os direitos digitais dos quais você fala?

Os direitos digitais são econômicos, individuais e políticos. Os econômicos se referem aos trabalhadores da tecnologia: salários justos, acesso à saúde, sindicatos, incentivos a empresas onde os funcionários têm voz. Os direitos individuais são o direito aos próprios dados, a escolher cedê-los ou não, a saber quais dados estão sendo coletados, a entender por que vemos algumas coisas e outras não no Instagram ou no YouTube. Os políticos têm a ver com a fiscalização das big techs por órgãos independentes. É importante criar, nessas empresas, comitês de jornalistas capazes de garantir que os algoritmos não privilegiem conteúdos falsos ou de incitação ao ódio, especialmente quando o assunto é política.

O título do seu livro é “Beyond the Valley”. O que há além do Vale do Sicílio?

No livro, mostro como a tecnologia tem sido usada para ajudar comunidades e pequenos negócios em vários lugares. Seja no México ou no Brasil, populações tradicionais, como indígenas e quilombolas, estão criando suas próprias tecnologias e redes de internet, intranet e telefonia móvel. Chamamos isso de soberania digital ou soberania dos dados. Ter acesso à internet não significa ser refém de empresas bilionárias. No Quênia, já produzem impressoras 3D com material retirado do lixo e que funcionam melhor do que as americanas porque foram projetadas levando em conta as necessidades locais. A tecnologia que hoje nos causa ansiedade pode ser usada para construir um mundo onde todos tenham a oportunidade de participar e liderar a revolução digital.

Você sugere atribuir novos significados às palavras preferidas do Vale do Silício. Para você, o que é “inovação” e “disruptivo”?

Inovação não é um modelo de negócios baseado na obsolescência programada. É fazer mais com menos, é criar algo novo quando os recursos são escassos. Inovador é usar inteligência artificial para combater a malária em Uganda. As favelas brasileiras estão cheias de inovação. O que é ser disruptivo? É combater os vícios digitais eliminando o botão “curtir”? Ou repensando a relação dos humanos com a tecnologia e perguntando se ela precisa mesmo ser tão rápida e quem projeta, controla e lucra com ela? Disruptivo é a tecnologia trabalhar para o interesse público e não para perpetuar a desigualdade.