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Cultura José Eduardo Agualusa

Do Nobel de Literatura Abdulrazak Gurnah, guardo a imagem de um homem gentilíssimo

Um autor com um discurso claro e coerente sobre questões como migração e colonialismo. Se o prêmio tivesse sido criado por um milionário brasileiro, certamente a lista dos vencedores seria muito diferente. Infelizmente, não estou nada certo de que fosse melhor ou mais diversa

Na última quinta-feira conhecemos o nome do Prêmio Nobel de Literatura deste ano. Abdulrazak Gurnah não constava entre os mais cotados nas listas de apostas. Há quem despreze estas listas. Eu não. Leio-as com atenção, mesmo sabendo que, quase sempre, dizem mais sobre as grandes inquietações do nosso tempo do que sobre a qualidade dos escritores listados. Isso não surpreende. Também as preferências do Comitê Nobel refletem (refletiram desde sempre) idênticas inquietações.

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Nas listas deste ano destacavam-se, por exemplo, várias mulheres africanas ou de ascendência africana. Falou-se muito na nigeriana Chimamanda Adichie. Falou-se ainda nas antilhanas Jamaica Kincaid e Maryse Condé e na ruandesa Scholastique Mukasonga. Chimamanda, de 44 anos, é o principal rosto do chamado feminismo negro. Os seus três romances venderam milhões de exemplares. Contudo, não tem ainda obra literária que justifique a premiação. Condé, pelo contrário, escreveu 15 romances, sobre temas muito diversos, com os quais tem vindo a acumular importantes distinções literárias no mundo francófono. Não surpreenderia vê-la ganhar o Nobel nos próximos anos.

O esforço que a Academia Sueca tem feito para mostrar que não se interessa apenas pelas literaturas produzidas na Europa e nos EUA chega a ser enternecedor. A verdade é que os jurados suecos, por muito eruditos e bem intencionados, são suecos. Leem originais em sueco e inglês, ou traduções nessas línguas. Acontece que menos de dois por cento dos livros de ficção publicados nos EUA e no Reino Unido são traduções. Ter boas traduções em sueco é ainda mais difícil. Contam-se nos dedos de uma única mão os escritores de língua portuguesa cujos livros estão à venda nas livrarias de Estocolmo.

Se o Prêmio Nobel de Literatura tivesse sido criado por um multimilionário brasileiro e a escolha dos autores premiados coubesse, por exemplo, à Academia Brasileira de Letras, certamente que a lista dos galardoados seria muito diferente. Infelizmente, não estou nada certo de que fosse melhor ou mais diversa. Tenho mesmo muitas dúvidas quanto a isso.

“Acho que eles querem descobrir um gênio de um lugar que foi marginalizado até agora. Poderíamos chamá-lo de colonialismo positivo”, afirmou o crítico literário sueco Jonas Thente, referindo-se às possibilidades de Chimamanda.

Se tivermos em conta este raciocínio, o triunfo de Abdulrazak Gurnah não constituiu uma surpresa absoluta. O seu perfil corresponde às inquietações do momento: o novo Nobel vem de Zanzibar, na Tanzânia, uma ilha quase mítica, com uma longa tradição de mestiçagem, sendo um dos destinos turísticos mais procurados do continente africano. Encontrei-o em diversos festivais literários, uns na África, outros na Europa, e assisti a alguns debates com ele. Guardo na memória a imagem de um homem gentilíssimo — a figura clássica do gentleman —, com um discurso claro e coerente sobre questões como migração, colonialismo e pós-colonialismo.

Infelizmente, Abdulrazak Gurnah tem apenas um livro traduzido para português — em Portugal.

Espero que em breve possamos encontrar todos os seus títulos nas livrarias do Brasil.