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Cultura literatura

Do YouTube a Chomsky: como Felipe Neto se transformou no mais novo intelectual da internet

Ex-crítico das políticas de transferência de renda e da intervenção estatal na economia, youtuber vira alvo da direita e da esquerda na internet ao descobrir autores como Eduardo Galeano depois dos 30 anos
O youtuber Felipe Neto Foto: Leo Aversa / Agência O Globo
O youtuber Felipe Neto Foto: Leo Aversa / Agência O Globo

No dia 6 de maio, o linguista americano Noam Chomsky foi um dos nomes mais citados no Twitter. O culpado foi Felipe Neto. “Chomsky DESTROÇOU o crush que eu tinha no Obama ”, informou a seus 13,5 milhões de seguidores na rede. Felipe estava lendo “Quem manda no mundo?”, no qual o intelectual progressista ataca a política intervencionista dos EUA e passa em revista a intromissão americana em outros países desde o século XIX até o governo de Barack Obama. O fim do “crush” se deu porque Chomsky acusa o ex-presidente de promover “campanhas internacionais de assassinato”, referindo-se aos drones que mataram civis no Oriente Médio. Dias depois, anunciou a conclusão da leitura: “Este livro abre seus olhos.”

De uns tempos para cá, Felipe, um dos pioneiros do YouTube no Brasil, tem usado as redes sociais para criticar o governo brasileiro (ele chegou a ser investigado , com base na Lei de Segurança Nacional, por chamar o presidente Jair Bolsonaro de “genocida”) e compartilhar suas leituras, que vão de clássicos da literatura a títulos engajados de ciências humanas. Numa publicação fixa em seu Instagram, onde tem 13,9 milhões de seguidores, ele sugere livros sobre a crise da democracia a apoiadores do governo que costumam atacá-lo.

Ao mostrar os pensadores que o influenciam, Felipe, de 33 anos, tem conseguido agitar ainda mais seus perfis nas redes, levando fãs a discutirem assuntos que vão de literatura brasileira a imperialismo americano e alavancando a venda de títulos, para a sorte de editoras. Numa espécie de “clube do livro” particular, ele abre sua biblioteca , expõe suas ideias e, voluntária ou involuntariamente, mantém-se no centro das atenções, recebendo elogios e críticas que fortalecem seu papel de influenciador digital. Ele, aliás, lê as obras nas versões em papel mesmo, e faz questão de postar suas capas.

Felipe Neto conta que tomou gosto pelos livros aos 11 anos, quando o pai o apresentou a Harry Potter. Aos 13, foi obrigado pela escola a ler “Dom Casmurro” e achou chato. Reconciliou-se com os clássicos e hoje cita Machado de Assis , Victor Hugo e Dostoiévski entre seus favoritos. No início do ano, contudo, protagonizou uma “treta” ao tuitar que forçar adolescentes a lerem autores como Machado e Álvares de Azevedo os afasta da literatura.

Apesar da experiência negativa na escola, Felipe continuou apegado aos livros. Na peça “Minha vida não faz sentido”, de 2015, dizia à plateia: “Nada é mais importante na vida do que quantos livros você vai ler. Nada!”.

O youtuber Felipe Neto Foto: Leo Aversa / Agência O Globo
O youtuber Felipe Neto Foto: Leo Aversa / Agência O Globo

A transformação de Felipe numa espécie de influencer intelectual , que indica livros cabeçudos nas redes sociais, coincide com sua recente caminhada rumo à esquerda. Criado na Zona Norte do Rio, Felipe é um self-made man da internet. Ele próprio diz que soube usar a “desregulamentação do contexto digital” para vencer na vida. Nos últimos anos, porém, começou a rever suas posições políticas e diversificar a leitura. Títulos sobre aperfeiçoamento pessoal, como “Mindset”, da psicóloga americana Carol S. Dweck, e suspenses de Stephen King e Charlie Donlea passaram a dividir as estantes com livros como “As veias abertas da América Latina”, do escritor uruguaio Eduardo Galeano , com o qual Felipe diz ter descoberto como “fomos e continuamos subservientes a interesses econômicos internacionais”.

— Já vinha tomando consciência de que, no Brasil, liberalismo, sociedade de mercado e meritocracia são ilusões — conta Felipe Neto. — Ninguém precisa ler para se dar conta de que o 1% concentra as riquezas e o resto se ferra, mas as leituras permitem argumentar sem achismo. Quanto mais você lê, mais percebe que precisa lutar por igualdade de oportunidade para os menos favorecidos.

Páginas da própria vida

Autor da recém-lançada biografia “Felipe Neto: o influenciador” (Máquina de Livros), Nelson Lima Neto lembra que o youtuber já foi “um fervoroso crítico do PT” e tinha “sérias restrições a políticas assistencialistas e ao intervencionismo estatal na economia”. A guinada à esquerda veio em 2018, “à base de muita leitura”, em paralelo ao avanço do bolsonarismo. Na Bienal do Livro do Rio de 2019, quando o ex-prefeito Marcelo Crivella quis que fossem recolhidos exemplares de uma graphic novel que estampava um beijo gay na capa, Felipe bancou a distribuição de 14 mil livros LGBTQIAP+ . Em 2020, deu entrevista ao New York Times e foi eleito pela revista Time uma das cem pessoas mais influentes do mundo. Segundo o biógrafo, ao se politizar, Felipe alcançou um público que ainda não o conhecia.

— Em 2010, ele era um hater que vivia de polêmicas. Depois, remodelou sua “marca” — diz o jornalista. — Começou então a falar menos palavrões, a pintar o cabelo e a entreter o público. A partir de 2018, passou a comentar política amparado por literatura e especialistas.

Felipe se apoia em suas leituras para dialogar com a esquerda. Em maio, tuitou sobre “O velho está morrendo e o novo não pode nascer”, no qual a filósofa americana Nancy Fraser critica o “neoliberalismo progressista” , que alia a desregulamentação da economia ao identitarismo. Felipe, assim como Fraser, não acha que a defesa dos interesses econômicos dos mais pobres e dos direitos das minorias sejam excludentes:

— Todas a lutas ( antirracista, feminista, LGBTQIAP+ ) passam pelo questionamento do neoliberalismo.

Ele coleciona haters por todo o espectro político. Na esquerda, há quem tire sarro por ele estar descobrindo autores como Chomsky e Galeano e o histórico de guerra de Obama. “O Felipe Neto descobriu Chomsky e o imperialismo dos EUA de uma tacada só. Qual será a próxima descoberta? Os Beatles?”, ironizou um tuiteiro. Já a direita diz que ele anda caindo no papo de autores esquerdistas. A ex-candidata à Câmara de Vereadores do Rio pelo Partido Novo Letícia Arsenio acusou Felipe de tratar “cada página” de Chomsky como “uma grande revelação” e de não procurar outras fontes. Ele não liga e garante que vai continuar falando sobre suas “descobertas e ignorâncias” na internet.

— As pessoas confundem a bolha delas com a massa. Se eu perguntar a cem brasileiros que análise eles fazem do governo Obama, quantos vão saber responder? — indaga Felipe. — As críticas vêm de quem faz conteúdo para a própria bolha e sente raiva se a massa está ouvindo um youtuber. Esse tipo de arrogância não me afeta. Não é com essas pessoas que eu quero falar. Ao dizer que Chomsky abriu meus olhos, quero dialogar com quem nunca ouviu falar dele ou dos problemas do governo Obama. Não me importo em falar o básico do básico.

O youtuber Felipe Neto: sucesso nas redes Foto: Leo Aversa / Agência O Globo
O youtuber Felipe Neto: sucesso nas redes Foto: Leo Aversa / Agência O Globo

Da política à raiva

A estante de Felipe também tem livros menos “engajados”, como best-sellers de Ernest Cline (“Armada” e “Jogador número um”). Às vezes, adquire vários numa só tacada, como fez recentemente (e postou a imagem da compra no Twitter), com títulos do filósofo russo Mikhail Bakunin.

O youtuber recebe dicas de livros de amigos e dos próprios seguidores. E pretende continuar as leituras políticas, mas antes quer mergulhar em outro tema: a raiva.

As editoras gostam quando ele cita seus livros e já enviam seus lançamentos para ele. Entre abril e maio, as vendas do livro de Fraser aumentaram cerca de 20%, segundo a editora Autonomia Literária. A procura por “Quem manda no mundo?” cresceu sete vezes em maio, diz a Planeta. E assim Felipe Neto vai escrevendo sua história, em público, com um olho no analógico e outro no digital.

A biblioteca de Felipe Neto

A seguir, Felipe Neto destaca e comenta seus livros preferidos atualmente.

- “Como as democracias morrem” (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt): “Um livro obrigatório para quem quer entender esse movimento global de guinada a regimes autoritários e reacionários.”

- “Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota” (Meteoro Brasil):“Uma surra nas teorias da conspiração e em toda a seita formada pelas mentiras do Olavo de Carvalho.”

- “Hamlet” (Shakespeare): “Amo como Shakespeare faz seus personagens falarem coisas horríveis soarem belas.”

- “Os irmãos Karámazov” (Dostoiévski): “Nada a ser dito além de ‘brilhante’, ‘maravilhoso’. Os irmãos: sexo, intelecto e fé. A profundidade é infinita. E o sistema é falho.”

- “Os miseráveis” (Victor Hugo): “É tão atual, é tão lindo e ao mesmo tempo violento. Tão triste e ao mesmo tempo regozijante.”