Cultura

'É sobre isso, e está tudo bem'? Talvez não: bordão que tomou o ‘BBB 22’ tem fãs e haters

Identificado como ‘marcador conversacional’, frase divide opiniões: adotada por alguns, é motivo de aversão para outros
"É sobre isso e tá tudo bem" foi considerada a frase da edição do "BBB22" Foto: Agência O Globo
"É sobre isso e tá tudo bem" foi considerada a frase da edição do "BBB22" Foto: Agência O Globo

De tanto que o bordão se espalhou, os brasileiros, como confirma a busca do Google, querem saber: o tão falado “é sobre isso” é sobre o quê? A frase está por todo lado e em qualquer contexto — e sua principal função parece ser mesmo confirmar o que foi dito anteriormente.

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Apesar da versatilidade e popularidade, a expressão não é unanimidade. Longe disso. Justamente porque os adeptos abusam do bordão, em posts e hashtags, há quem não suporte mais ouvi-lo. Como que antecipando que essa discordância entre adeptos e detratores pode existir sem maiores problemas, os usuários da expressão passaram a acrescentar um conciliador “e tá tudo bem” ao final da frase.

— Eu perguntava às pessoas do meu círculo e todas diziam: “Meu Deus, meu instagram só tem isso, meus stories só têm isso” — diz a pesquisadora Bruna da Costa Moreira, doutora em Linguística pela Universidade de Brasília. — Um falante que consultei chegou a dizer: “Eu achei estranho na primeira vez que ouvi, mas todo mundo tá usando, eu comecei a usar também”. E teve gente que disse que começou a usar de brincadeira.

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Moreira passou então a pesquisar o bordão. Ela acredita que ele se naturalizou como uma variação de “(não) é sobre x, é sobre y” — uma importação da língua inglesa.

Seja qual for a sua (ainda incerta) origem, o “é tudo isso e tá tudo bem” ganhou força no “BBB 22”, sendo adotado desde o primeiro dia pelos participantes. Até o apresentador Tadeu Schmidt se rendeu à expressão ao falar sobre as estratégias dos jogadores. “É sobre combinar voto, é sobre isso e tá tudo bem!”, disse ele.

— Essa foi “A” frase da edição: foi tudo muito aleatório, como o bordão. “É sobre isso” significa que, venha o que vier, está tudo certo — crê o dançarino Luciano Estevan, primeiro eliminado do “BBB 22”.

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Tecnicamente, o bordão pode ser identificado como um “marcador conversacional”, na mesma linha de outros como “é isso aí”, “pois é”, “não me diga” etc.. Todos são úteis para dar continuidade a uma conversa, concordar com um ponto de vista ou fazer graça.

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Segundo Luana De Conto, professora de Linguística na Universidade Federal do Paraná, a peculiaridade do bordão é o uso do “isso” como termo coringa, que remete a entidades abstratas. Essa abstração permite que se encaixe em basicamente qualquer assunto.

— O “isso” dentro da expressão “é sobre isso” não tem instruções específicas — explica De Conto, que defende o bordão. — Por ser vago, ele pode às vezes retomar um fato, uma afirmação, e todo um contexto comunicativo. É um uso perfeitamente natural e possível dentro das possibilidades da língua portuguesa.

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Surfando no hype do bordão, a Banda Meme lançou um single para satirizá-lo.

—  A ideia inicial é que as pessoas utilizassem a música para dizer que "É sobre isso e tá tudo bem" quando na verdade não está nada bem — diz Saulo Xavier, cantor e compositor do grupo. —  O interessante é que a expressão possui uma força psicolinguística tão forte que as pessoas estão utilizando a música para associar com qualquer frame da vida, seja positivo ou negativo.

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O cantor e compositor Leo Jaime, por sua vez, é do time que já está saturado:

— Acho que esses modismos são muito chatos — diz ele, avesso a repetições de expressões da moda em geral que também marcaram presença no “BBB 22”, assim como “sou atravessado” para dizer algo como “sou afetado”, e “lugar” no sentido de “papel” e “posição” (esta foi até motivo de piada do apresentador do “BBB” Paulo Vieira, que perguntou onde fica esse lugar de que tanto os participantes falam). — Odeio também quando dizem, por exemplo, que “Scooby entregou”. O que querem dizer é que ele foi bem. Mas estamos no mundo do delivery, então nada é mais satisfatório: entrega.

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Professor do Departamento de Sociologia da UFRJ, Alexandre Werneck também vê uma importação do inglês na raiz de expressões recorrentes.

— Reconheço que os estrangeirismos são um fenômeno normal da língua, e vê-se uma incorporação em tradução literal, notadamente do inglês. O problema é quando há conflito com o conteúdo em português, não permitindo a complexidade e, no limite, eclipsando alguns sentidos — pondera Werneck. — O “é sobre” é o “is about” na tradução literal. Mas o que mais me incomoda atualmente é o clichê “narrativa”, porque apaga a diferença entre narração e descrição. As disputas não são “de narrativas”, mas de versões. Um aluno apareceu com uma versão anedótica ótima desse fenômeno todo: ele chamou de “gourmetização da escrita”.

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Ou da fala mesmo, cujo aspecto que pode ser limitador é resumido pelo poeta Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras:

— De maneira simples, diria que somos usuários de palavras, mas, quando passamos a ser usuários de expressões, caímos no lugar-comum. É tão interessante combinar, misturar palavras, para que ficarmos escravos, por inércia mental, de combinações já prontas e/ou gastas pelo uso excessivo e indiscriminado?

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Colunista do GLOBO, Eduardo Affonso já viralizou com textos sobre expressões desgastadas:

— Quando as palavras são usadas para qualquer coisa, perdem a força, se esvaziam, nesse caso a expressão é como uma faca que você usa demais e perde o fio, fica cega. Eu por exemplo parei de usar “ressignificar”, “tóxico”... A intenção muitas vezes é valorizar um discurso, mas acaba diluindo.

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Em vez da intenção de valorizar o discurso, até pela sua difusão em hashtags nas redes sociais acompanhando fotos e selfies, o bordão pode também ser associado a uma cultura de positividade — o que é popularmente conhecido como “good vibes” (boas vibrações, em português). No mesmo “BBB22” em que se destacaram frases como “a vida é irada”, o bordão não poderia ficar de fora também dessa função.

— Para mim, a frase remete a algo positivo, sim — diz a influenciadora Larissa Tomásia, sexta eliminada da edição. — Ela conforta. Uso em todos os meus vídeos nas redes sociais. Até tentei tirar da minha rotina, mas não consegui.

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Tanta positividade pode não ser muito... positivo. Existe até um termo criado para definir esse excesso: “positividade tóxica”. Frases feitas repetidas à exaustão podem acabar escondendo sentimentos bem humanos, como a tristeza e a dor. Ou seja: pode até ser sobre isso, mas não está — necessariamente — tudo bem.

— Hoje, com as redes sociais, há uma necessidade de mostrar que estamos sempre bem o tempo todo — diz Larissa Polejack Brambatti, professora da Universidade de Brasília e especialista em saúde mental. — Só que ninguém está sempre bem. É preciso tomar cuidado com uma cultura de não entrar em contato com os sentimentos. Isso é uma negação de si e do outro. Assim, acabamos nos perdendo do aprendizado importante que é lidar com nossos sentimentos.

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Professor emérito da Escola de Comunicação da UFRJ, Marcio Tavares D’Amaral acha que o bordão reflete questões do pensamento pós-moderno, e passa por uma decretação feita pelo dicionário de Oxford em 2016: a de que estaríamos vivendo no reino da pós-verdade.

— Como definimos a pós-verdade? Como uma situação em que, ao fazermos uma determinada escolha, os fatos objetivos não valem mais do que qualquer opinião — explica o pós-doutor em Filosofia pela Universidade de Paris V Sorbonne e autor de 20 livros. — É como se os fatos objetivos fossem apenas outra opinião. Não há mais a capacidade nem o desejo de averiguar se essa coisa é um fato, e se está bem ou não está bem. Porque se “é isso aí e está bem”, então o que vier eu aceito, porque não é para ser avaliado, ou discutido.

(Colaborou Claudia Amorim)

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