Exclusivo para Assinantes
Cultura

Editoras independentes brasileiras preparam ofensiva em Portugal

Nós e n-1 começam a operar no país nas próximas semanas; lusitanos ainda estranham a 'língua brasileira’, mas demonstram interesse em obras sobre sobre racismo e gênero
Editoras independentes brasileiras apostam no mercado português, que ainda tem algum preconceito com a literatura em "língua brasileira" Foto: André Mello
Editoras independentes brasileiras apostam no mercado português, que ainda tem algum preconceito com a literatura em "língua brasileira" Foto: André Mello

SÃO PAULO — Sempre que ia a um evento literário na Europa, a editora Simone Paulino, da Nós, enchia as malas com títulos recém-lançados e vendia por lá a livreiros amigos, brasileiros expatriados e quem mais lesse português e quisesse dar uma chance a novos nomes da literatura brasileira, como Aline Bei ou Mariana Salomão Carraca. Em breve, quem estiver na Europa e quiser comprar algum livro da Nós não precisará mais esperar uma visita de Simone ou importá-lo. A editora independente paulistana vai começar a operar em Portugal, com direito a site e perfis nas redes sociais para se comunicar com os leitores lusos.

— Há uma nova geração de leitores portugueses muito interessada na literatura brasileira — diz Simone, que está renegociando os contratos de seus autores para publicá-los do outro lado do Atlântico.

Valter Hugo Mãe: 'Não se deixem convencer de que o Brasil deu errado'

Em março, a Nós Portugal lança "O contrário da solidão: manifesto por um feminismo em comum", da filósofa Marcia Tiburi . No Brasil, o livro é publicado pela Record como "Feminismo em comum" — a edição portuguesa copia o título da italiana. A Nós pretende levar para Portugal nomes que já constam no seu catálogo aqui, mas ainda não foram publicados lá, como a ítalo-somali Igiaba Scego .

O sonho de botar um pezinho além-mar foi assegurado por uma parceria com a Motor Editorial, iniciativa dos editores Julio Silveira, da Imã, e Jorge Sallum, da Hedra, para imprimir e distribuir livros brasileiros em Portugal. A Motor estreou em agosto de 2020, com uma estante de títulos brasileiros na Feira do Livro de Lisboa. Conceição Evaristo e Nei Lopes , editados pela Pallas, e "Necropolítica" , do camaronês Achille Mbembe, lançados aqui pela n-1 (lê-se ene menos um), venderam como pastéis de Belém recém-saídos do forno.

A n-1 também se prepara para fincar bandeira em solo lusitano. O editor Ricardo Muniz Fernandes disse ao GLOBO que, há anos, portugueses de passagem por São Paulo procuram os livros de Mmembe (que tem alguns títulos editados em Portugal, como "Crítica da razão negra") e de outros autores que discutem o racismo , além da psicanalista Suely Rolnik e do filósofo Peter Pál Pelbart.

— A operação vai começar pequena. Em março, lançamos o site. Estamos explorando o território, as capitanias hereditárias, e a colonização de fato vêm depois — brinca Muniz Fernandes.

'Luanda, Lisboa, Paraíso': Escrito ao som de Cartola, romance de Djaimilia Pereira de Almeida explora relações assimétricas

A n-1 também vai operar em parceria com a Motor, que vai imprimir os livros lá em Portugal e distribuí-los em livrarias e marketplaces lusos. A Motor já representa oito editoras em Portugal: Circuito, Hedra, Imã, Kalinka, Mórula, n-1, Nós e Pallas. Silveira, um dos fundadores da editora Casa da Palavra, que dirigiu a Nova Fronteira e é curador do LER Salão Carioca do Livro, conta que sempre perguntam se os livros que ele vende são escritos em português ou em "brasileiro". Ele responde que são escritos na língua portuguesa do Acordo Ortográfico .

Barreira linguística

Por incrível que pareça, a barreira linguística é um dos desafios que os editores que se aventurarem pelas praças lusas terão de enfrentar. Os portugueses ainda estranham nosso manejo do idioma que eles nos legaram. Um escritor brasileiro, publicado aqui e lá, disse ao GLOBO suspeitar que "os portugueses cultos reconhecem uma avassaladora vantagem do Brasil no campo da música popular" e que "a nossa produção audiovisual brasileira é mais ampla e diversificada do que a deles".

— Por isso, a literatura fica sendo o feudo onde eles têm certeza de que são superiores, ainda mais porque é na palavra impressa que aparecem concretamente as discrepâncias em torno do acordo ortográfico, que ainda mobiliza as pessoas de forma apaixonada — especula o escritor, que prefere não se identificar.

'Essa gente': Chico Buarque faz retrato escrachado do Brasil a partir do Leblon em novo romance

A editora portuguesa Bárbara Bulhosa, da Tinta da China, que publica aqui e lá, concorda e lamenta que seus conterrâneos não deem aos nossos escritores a mesma atenção que dedicamos aos deles (na escola, na imprensa e nas livrarias). Segundo Bárbara, apesar da boa acolhida da crítica literária lusitana, as vendas dos livros brasileiros em Portugal são "irrisórias". Uma das poucas exceções é Chico Buarque .

O escritor angolano José Eduardo Agualusa , colunista do GLOBO, também não entende por que autores superlativos como Luis Fernando Verissimo e Rubem Fonseca nunca venderam bem em Portugal, enquanto luso-africanos fazem sucesso por lá desde os anos 1980, quando seu conterrâneo Pepetela conquistou os leitores da antiga metrópole.

— Para os luso-africanos é mais fácil entrar em Portugal porque temos autores que são best-sellers lá, como Mia Couto — diz Agualusa. —Uma coisa boa foi o aparecimento da Travessa, que é uma das livrarias mais bonitas de Lisboa.

Marcos da Veiga Pereira: 'A pandemia mostrou que precisamos das livrarias'

A Travessa aportou na capital portuguesa em julho de 2019 prometendo dedicar 20% do espaço a livros editados no Brasil. Rui Campos, sócio da rede, conta que os livros brasileiros já representam um terço das vendas — que ele não credita apenas ao maior número de brasileiros morando em Portugal, mas a uma procura geral.

Um passo à frente

Segundo a editora Clara Capitão, da Companhia das Letras Portugal, o interesse pela literatura brasileira em Portugal "ainda está longe do desejável". No entanto, livros que discutem o racismo, como o romance "Torto arado", de Itamar Vieira Junior , publicado primeiro no mercado luso, estão entrando no foco dos leitores portugueses. Em março, sai por lá a edição de "O avesso da pele", romance de Jeferson Tenório narrado por um filho cujo pai, um homem negro, é morto pela polícia.

— O Brasil está um passo à frente de Portugal na discussão das questões raciais e de gênero , e os escritores brasileiros têm sido mais corajosos e rápidos a falar delas. Ao publicar esses autores aqui, onde ainda há um insuficiente tratamento desses temas na literatura, conseguimos fazer algum barulho — observa Clara. — A vinda de editoras brasileiras será ótima para agitar o panorama literário e ajudar a quebrar esse preconceito que ainda existe com o português do Brasil.