Exclusivo para Assinantes
Cultura

Eduardo Galeano: tradutor e amigo Eric Nepomuceno lista virtudes pessoais e poéticas do autor que faria 80 anos

Ao buscar respostas, autor de ‘As veias abertas da América Latina’ revelou horrores e esplendores no que escreveu
O escritor uruguaio Eduardo Galeano completaria 80 anos nesta quinta-feira Foto: Robert Yabeck / Divulgação
O escritor uruguaio Eduardo Galeano completaria 80 anos nesta quinta-feira Foto: Robert Yabeck / Divulgação

Nascido em 3 de setembro de 1940, em Montevidéu, Eduardo Germán María Hugues Galeano nunca deu a menor importância para as datas redondas. Mas hoje, caso continuasse por aqui (partiu para sempre em abril de 2015) , ele faria 80 anos, e é inevitável, para mim, mergulhar nas águas da memória de uma amizade que começou de imediato num fim de tarde de março ou abril de 1973 em Buenos Aires, onde eu tinha aportado em fevereiro. Foram 47 anos sem um único dia de interrupção, e ele continua estando ao meu lado de alguma forma diáfana que não sei descrever.

Artigo: Minhas livrarias, por Eric Nepomuceno

A impressão deixada naqueles primeiros encontros (e que se confirmou e reforçou ao longo do tempo) foi de alguém dono de um humor ágil, uma inquietação afiada, de alegria de viver e determinação para enfrentar temporais. Alguém impetuoso e ao mesmo tempo cuidadoso, com plena convicção da capacidade humana de refazer a história e desvendar a realidade oculta atrás de mecanismos criadores de injustiças e desigualdades.

No ofício de escrever ele tinha características nítidas. Era de uma exigência sem fim, e deixou impregnada em cada livro sua marca de humanidade infinita e de poesia. Outra característica era a obsessão por revelar o que havia atrás do que se via, do que a história tinha revelado. Descobrir, nas miudezas do cotidiano, a grandeza da vida. Lapidou, que nem ourives, cada frase que escreveu, principalmente a partir de um livro essencial, chamado “Dias e noites de amor e de guerra”. Ali ele forjou seu estilo definitivo, que encontrou esplendores na trilogia “Memória do fogo”, no “Livro dos abraços” e em tudo que veio depois: rompeu para sempre as fronteiras entre texto jornalístico, texto de ficção, ensaio, impregnando tudo de consistente prosa poética.

Sempre com veia crítica

Eduardo tinha uma escrita direta, buscava reduzir tudo que saía de sua caneta (sim, ele escrevia primeiro à mão...) à mais pura essência. Repetia mil vezes a lição de Juan Rulfo, mestre de mestres: “Escrever é cortar”.

Jamais fez prosa militante, panfletária. Ele ensinou que a gente é o que a gente escreve, e o que a gente escreve é o que a gente é. Uma coisa depende da outra, está diretamente ligada. Claro que em seu ofício o escritor reflete sua maneira de ver o mundo e a vida. Nisso, Eduardo foi de uma grandeza única. Não era, jamais foi, um escritor de certezas. Era, como aliás na vida, um homem de dúvidas. E assim, buscando respostas, buscando caminhos, revelou horrores e esplendores no que escreveu.

Crítica: Prosas breves de beleza e denúncia em livro de Galeano

No panorama dessas nossas comarcas latino-americanas, escolheu o lado em que acreditava. Mas jamais perdeu sua veia crítica: Eduardo não acreditava em projetos fechados. Acreditava em propostas que teriam, necessariamente, de ser adaptadas à realidade para, enfim e alguma vez, poder transformar essa realidade.

Nos últimos tempos, buscou se distanciar de seu livro mais conhecido, “As veias abertas da América Latina”. Sentia-se incomodado, como se todos os seus outros livros fossem ofuscados. Engano dele. A trilogia “Memória do fogo” e principalmente “O livro dos abraços” tiveram vendas próximas ao livro que o consagrou.

Conheci pouca gente na vida tão solidária e generosa como Eduardo. E, ao mesmo tempo, tão rigorosa nas suas relações pessoais. Costumava repetir uma frase de Carlos Fonseca Amador, um dos fundadores da Frente Sandinista na Nicarágua dos anos 1960: “O verdadeiro amigo é aquele que critica na frente e elogia pelas costas”. Foi assim o tempo todo.

‘A memória de todos nós’: Eric Nepomuceno enfrenta passado de ditaduras na América do Sul

Sempre que divergiu de alguém, e isso aconteceu um sem-fim de vezes, Eduardo soube ser contundente sem jamais perder a linha da justiça e do respeito.

Era um ser excepcionalmente rigoroso, principalmente com ele mesmo, com os amigos e com as coisas nas quais acreditava. Quando era crítico de alguém, seja nas artes, no cotidiano ou na política, era ao mesmo tempo de uma lealdade sem limites. Quando discordava, dizia de frente, cara a cara.

No dia a dia ele era um caminhante incansável. Dedicava horas e horas a caminhadas sem fim pela sua Montevidéu, que ele descrevia como algo raro: “Uma cidade respirável e caminhável”.

Mais que apreciador, era um amante exaltado do futebol. Numa Copa do Mundo, na hora das partidas espetava uma plaquinha no portão de sua casa montevideana: “Cerrado por fútbol”, ou seja, a exemplo dos comércios que avisavam “fechado para reforma”, ele se fechava para ver os jogos.

Encontros com Sócrates

Lembro de ter apresentado Eduardo ao Sócrates. E, quando o mestre da bola morava no Rio, cada vez que Eduardo vinha íamos até a casa dele. Nada mais curioso que aquelas conversas: Eduardo falava de futebol, Sócrates falava de literatura...

Muitas vezes — é inevitável — me pergunto o que ele diria do que acontece no mundo e, em especial, nas Américas.

Qual seria o tamanho de seu espanto diante de Donald Trump e Jair Bolsonaro? Até que ponto chegaria sua indignação com o constante destroçar do Brasil, que era uma espécie de segunda pátria para ele?

E também muitas vezes saber que Eduardo não está vendo essa avalanche de aberrações e horrores acaba servindo para aliviar um pouco a dor que sua ausência me traz.

* Eric Nepomuceno é escritor, jornalista e tradutor de Eduardo Galeano