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Cultura

Eduardo Jardim une literatura, história e um pouco de autobiografia para analisar a epidemia de Aids

No livro 'A doença e o tempo', filósofo carioca aborda um dos maiores traumas dos anos 1980
Washington (EUA) - junho de 1991 - Doença - Aids - Manifestação e protesto - Em frente à Casa Branca, protesto dos dez anos de Aids - Manifestantes deitam-se e mostram cartazes com o número de mortos em cada ano - Foto US News Foto: US News/6-1991
Washington (EUA) - junho de 1991 - Doença - Aids - Manifestação e protesto - Em frente à Casa Branca, protesto dos dez anos de Aids - Manifestantes deitam-se e mostram cartazes com o número de mortos em cada ano - Foto US News Foto: US News/6-1991

SÃO PAULO – O passado batia sempre à porta e, um dia, o filósofo carioca Eduardo Jardim resolveu abrir. Convidou-o para entrar e o transformou em um livro. “Toda experiência, para ter seu acabamento, precisa ser narrada”, escreve Jardim em, “A doença e o tempo: Aids uma história de todos nós”, seu novo livro, que ele lança hoje, às 19h, na Livraria da Travessa, em Botafogo.

Quando abriu a porta para o passado, Jardim ainda estava às voltas com a elaboração de um passado um pouco mais antigo, que ia de 1967, quando Antônio Callado publicou o romance “Quarup”, passava pelo show “Gal a todo vapor”, em 1971, e acabava em 1983 com a morte da poeta Ana Cristina Cesar. Essa ruminação sobre ditadura, tropicalismo, poesia marginal deu nos ensaios do livro “Tudo em volta está deserto”. Ao enfim elaborar os anos 1970, Jardim se pôs a pensar da década seguinte e no que mais marcou aqueles anos: a epidemia de Aids.

“A doença e o tempo” mistura ensaísmo, história e crítica literária para contar como, nos anos 1980, a Aids traumatizou a geração que desfrutara das liberdades sexuais conquistadas na década anterior. Aqui e ali aparecem umas pouquíssimas pinceladas autobiográficas, bastante sutis, mas suficientes para derrubar o leitor. Naquela época, Jardim amou um rapaz soropositivo.

– O que me moveu a escrever esse livro foi o afeto, foi essa história que eu vivi, mas não achei que tivesse que fazer um livro autobiográfico – disse Jardim ao GLOBO. – Eu queria era me dirigir às pessoas, contar como foram os anos 1980. A aids suscita perguntas que concernem a todos nós, não só a de um determinado grupo.

“A doença e o tempo” é dividido em três partes. Na primeira, “A viagem”, narra caminho da aids das selvas africanas, no fim do século XIX ou começo do XX, até aportar no Brasil, no início dos anos 1980. Jardim lembra que a Aids talvez não tivesse se espalhado como uma epidemia não fosse a precariedade em que vivam os habitantes das colônias europeias na África.

Construção dos 'grupos de riscos'

Ele também destaca atuação da militância LGBT americana para conscientizar o público dos riscos da aids, incentivar a prevenção e pressionar o governo por políticas efetivas de combate à doença. Um desses grupos, o ACT UP, criado em 1987, que apostou em campanhas de conscientização e denúncia espetaculares, como os “die-ins”, encenações de morte em igrejas católicas para protestar contra a condenação à camisinha.

A segunda parte, “Peste, Aids e castigo”, aborda a construção de conceitos como “grupo de risco”, que associou a doença a populações específicas (os “quatro H”: homossexuais masculinos, usurários de heroína, hemofílicos e haitianos) e reforçou o estigma que os soropositivos ainda carregam. A última parte, “Aids e tempo”, revisita a literatura ficcional e ensaística inspirada pela epidemia, de “Aids e suas metáforas”, da filósofa americana Susan Sontag, a contos de escritores brasileiros, como Caio Fernando Abreu, Silviano Santiago e Bernardo Carvalho.

A literatura, aliás, atravessa todas as partes do livro. Jardim recorre a romances de Joseph Conrad e Mario Vargas Llosa para descrever a África colonial onde apareceu o vírus. Recorda “Um diário do ano da peste”, de Daniel Defoe, e “A peste”, de Albert Camus, para explicar como, nos anos 1980, a Aids foi anunciada como uma praga celestial para punir a homossexualidade e os excessos sexuais das décadas anteriores.

"A doença e o tempo", novo livro do filósofo Eduardo Jardim Foto: Reprodução/Divulgação
"A doença e o tempo", novo livro do filósofo Eduardo Jardim Foto: Reprodução/Divulgação

– A literatura é a minha paixão – confessa Jardim. – Eu não sou historiador. Queria me alimentar não só de dados, mas também das emoções que só a literatura passa. O livro tem pesquisa documental, mas a literatura também é um instrumento forte para entender a realidade. Às vezes, a literatura me ajuda a pensar mais do que a teoria. É o meu alimento, o meu tesão.

Jardim também desenvolve no livro uma discussão filosófica sobre o tempo – além de divulgador de Hannah Arendt no Brasil, ele é leitor de pensadores preocupados com a temporalidade, como Santo Agostinho e Martin Heidegger. Para Jardim, diferentemente no câncer que se espalha pelo corpo, a aids não acontece no espaço, mas no tempo. Essa abordagem espacial da doença, diz ele, também reforça preconceitos pois circunscreve a aids a determinada geografia humana, os “grupos de risco”.

– Quando a aids chegou, a gente vinha de uma porralouquice que achava que a morte não existia, que podíamos tudo. A Aids nos limitou, nos obrigou a reavaliar o que significavam o tempo, as nossas vivências, o valor da vida. Tivemos que encarar a finitude e a precariedade. Eu quis elaborar isso filosoficamente.

Jardim disse que não escreveu o livro para responder aos tempos conservadores, embora se preocupe que ideologias atrapalhem o combate as políticas públicas de combate à doença.

"A doença e o tempo: aids uma história de todos nós"
Autor: Eduardo Jardim
Editora: Bazar do Tempo
Páginas: 80
Preço: R$ 48