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Cultura

Efeito da pandemia, lazer com hora marcada fará carioca respeitar horários?

Especialistas discutem se estamos preparados para abrir mão da informalidade e do improviso em uma reabertura repleta de agendamentos
Planejar é preciso Foto: Freepik / Arte Fernanda Rossi
Planejar é preciso Foto: Freepik / Arte Fernanda Rossi

RIO — Conhecido pela arte do improviso e da informalidade, o brasileiro, e principalmente o carioca, vem sendo confrontado com palavras que desafiam sua própria natureza: planejamento, agendamento. Acostumadas a um tempo dilatado, aberto aos acasos da vida, que permitia usufruir de bares, parques , museus , praias sem pressa nem formalidade, as pessoas agora frequentam exposições com hora e duração marcadas, têm aplicativo para reservar lugar na academia, e precisam comprar ingresso para quase tudo com antecedência.

Com os novos protocolos da reabertura, o lazer passou não apenas a ser planejado com antecedência, como também otimizado para caber na duração preestabelecida. O novo hábito pode afrontar, mas as estranhezas são administráveis, acredita o antropólogo William de Almeida Corbo.

— As restrições impostas pela pandemia dificultam determinadas práticas que valorizamos na vida brasileira — diz Corbo, professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). — Ir à rua, por exemplo, essa experiência de encontros e afetos, se transforma em algo que deve ser objetivo. Porém, em uma sociedade como a nossa, reconhecer a necessidade de planejamento é enfrentar barreiras culturais. O desafio, portanto, é encontrar caminhos para manter, de alguma forma, esses aspectos da vida brasileira nas restritas interações que hoje vivenciamos no espaço público.

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O escritor, antropólogo e diplomata Gustavo Pacheco acredita que o impacto das restrições será maior nas cidades com dinâmica e vida social mais aberta ao acaso. Como o seu Rio de Janeiro natal, por exemplo. Desde que deixou a cidade, em 2006, e foi morar em lugares de características mais planejadas (ele vive atualmente em Brasília), notou que os encontros fortuitos de sua vida diminuíram.

— Sem dúvida o Rio é exemplar nesse sentido, vide a proverbial “falta de compromisso” do carioca — diz o autor de “Alguns humanos”. — Boa parte daquilo que eu sempre achei ser algo próprio da experiência urbana era, na verdade, próprio da experiência urbana do Rio. Isso pode mudar com as novas restrições.

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Especialista em Comunicação Humana, o psicólogo Claudio Paixão é categórico: o brasileiro terá que dar um basta, ainda que temporariamente, para a informalidade. Mesmo que isso mate uma de suas mais prezadas características, a espontaneidade, com a qual o povo consegue surfar pelas regras, aponta ele.

— A vontade de circular e de andar segundo os próprios desejos sem nada organizado é tipica do ser humano — diz Paixão. — Mas daqui para frente vamos ter que criar novas relações de confiança. A gente pode criar uma série de protocolos, mas sempre haverá alguém achando que a regra não é para ele. O brasileiro acha que pode passar direto pelas barreiras. A regra é uma prisão: só vale para o outro.

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Virar essa chave parece difícil, mas não impossível. Após meses de quarentena, a atriz Bia Arantes aproveitou a reabertura para jantar fora com o namorado na semana passada e comemorar uma data importante. O romantismo e a espontaneidade da noite, porém, esbarraram em um ambiente totalmente controlado: álcool gel em cada mesa, QR code para o cardápio, talheres e guardanapos esterilizados e embalados individualmente em plásticos. Exigências necessárias, é claro, mas que deram uma “estranha sensação” à atriz, embora ela confesse estar se adaptando com alguma naturalidade.

— Essa semana fui tomar café com duas amigas que não via há muitos meses, e quando me sentei já abri o cardápio no QRcode sem nem perceber o que estava fazendo — diz ela. — É doido ver como o ser humano realmente se adapta.

Segundo uma pesquisa realizada em setembro pelo Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro (SindRio) e a Associação Nacional de Restaurantes (ANR), 59% dos brasileiros veem o horário limitado como um dos grandes empecilhos para voltar a frequentar restaurantes nessa retomada. Já 41% mencionaram as vagas reduzidas por conta do espaçamento necessário das mesas.

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Por outro lado, a reabertura dos museus dá uma boa dimensão da nossa capacidade de adaptação no que diz respeito às experiências culturais. Curador chefe do Museu de Arte do Rio (MAR), na Zona Portuária , Marcelo Campos conta que as visitas agendadas tiveram ótima aceitação do público. Mas reconhece que, com o tempo restrito de visita, a relação dos visitantes com as obras de arte não é a mesma.

— As pessoas estão felizes em poder ir ao museu novamente, mas é verdade que há um impacto na experiência, num sentido mais amplo — afirma Campos. — É muito diferente entrar num museu sem ter planejado e com tempo livre de observação. O público também mudou. Perdemos o fato surpresa, aquelas pessoas que estão com tempo livre por perto e decidem entrar em um museu por acaso, ou pela primeira vez. Para que isso volte a ser um hábito das pessoas será necessário um trabalho de longo prazo.

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Para a consultora em organização Micaela Góes , o planejamento virou uma questão de “resiliência”. Ninguém vai acordar organizado da noite para o dia, é claro, mas a condição está lá, e vai permear nosso cotidiano. A apresentadora do programa “Santa ajuda”, do GNT, acredita que será um aprendizado na marra, porque “ é a única saída que nós temos”.

— No início da pandemia, diversas famílias tiveram que incorporar novas formas de organização doméstica durante a quarentena para sobreviver. A reabertura está agora transferindo essa mesma necessidade para a rua — diz Micaela. — Quem já havia começado a se planejar minimamente em casa vai se adaptar mais facilmente. Quem ainda não fez vai acabar fazendo, porque é um hábito para cuidar dos outros, e que salva vidas. E é a saída criativa para voltar a viver em sociedade e reaquecer a economia.