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Cultura

Elba Ramalho: 'Ainda não estou santa'

Cantora grava disco inspirado no nascimento da neta e prepara livro que mistura biografia e experiências místicas. Às vésperas de completar 70 anos, conta que está há oito sem namorar
Elba Ramalho: prestes a completar 70 anos, cantora lança novo disco e prepara livro em que vai misturar biografia com experiências místicas Foto: Leo Aversa / Agência O Globo
Elba Ramalho: prestes a completar 70 anos, cantora lança novo disco e prepara livro em que vai misturar biografia com experiências místicas Foto: Leo Aversa / Agência O Globo

Elba Ramalho está de volta para o seu aconchego. Em seus quarenta anos de carreira, a cantora nunca havia passado um mês inteiro em casa. Levava a vida na estrada, fazendo uma média de sete shows por mês em vários cantos do país. A quarentena forçada pelo novo coronavírus, claro, a obrigou a parar. E isso aconteceu bem no momento em que se tornou avó de Esmeralda. A bebê, de cinco meses, é filha de Luã , fruto da relação da cantora com o ator Maurício Mattar. Mergulhada na intensa convivência familiar, Elba viu-se inspirada a fazer um novo disco, o 39º de sua discografia.

— Sinto falta de estrada, do show, público, de cantar. O disco traz um acalanto — conta ela, que tem feito lives de oração diárias pelo Instagram e, na semana passada, testou positivo para a Covid-19 (segue estável e observada por médicos). — Deus sempre me escolhe para carregar dores. Não tenho medo.

Elba Ramalho: aos 40 anos de carreira e prestes a completar 70 de idade, cantora lança o disco "Eu e vocês", com participação dos filhos Foto: Leonardo Aversa : Leo Aversa / Agência O Globo
Elba Ramalho: aos 40 anos de carreira e prestes a completar 70 de idade, cantora lança o disco "Eu e vocês", com participação dos filhos Foto: Leonardo Aversa : Leo Aversa / Agência O Globo

Cada vez mais devota de Nossa Senhora, Elba também se dedica a escrever um livro que mistura biografia e suas experiências místicas (“quero dizer às pessoas que Deus existe e é bom” , diz). Nos últimos oito anos, período em que está “dando um tempo de homem”, a cantora mergulhou fundo na espiritualidade.

Voltando ao disco, "Eu e vocês" terá 12 faixas, que serão lançadas nas plataformas de áudio em forma de singles, quinzenalmente. No início do mês, ela adiantou "Maçã do rosto", canção de Djavan, composta em 1976. Na última sexta-feira (18), veio "Ainda tenho asas", primeira parceria com Luã, que também produz o projeto. O clima caseiro, aliás, está ainda nas vozes das filhas da cantora, Maria Clara, Maria Paula e Maria Esperança, que participam fazendo backing vocals.

No próximo dia 2, Elba lança uma versão de “Felicidade”, de Marcelo Jeneci e Chico César . Na sequência, virão também “Sintonia”, sucesso radiofônico de Moraes Moreira , grande amigo de Elba e de quem ela gravou 17 canções, a música-título do trabalho, composta por Zélia Duncan, entre outras. Gravado no estúdio de Elba em casa, o álbum está recheado de xotes românticos, seguindo a linha de “Balaio de amor” disco de 2009, com o qual a cantora ganhou um Grammy Latino,

Às vésperas de completar 70 anos, em 2021, a paraibana diz, nesta entrevista, que a fé lhe dá paz de espírito para envelhecer sem "desespero".

Como surgiu a primeira parceria musical com seu filho, Luã, e como é ter o filho como produtor de disco?

Raramente componho. Quando comecei a fazer teatro, eram os poetas que eu interpretava. Conhecia a obra de Fernando Pessoa, Mayakovsky, Brecht, Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Cecilia Meireles. Depois de ler esse povo, falei: "não vou escrever, não sou capaz". Num verão, fiz um post, o Luã perguntou se podia continuar e fizemos a parceria. Luã fez o técnico de som ouvir todos os meus discos. Conhece meus registros de voz, é perfeccionista, exímio violonista e se formou em produção. É bom trabalhar com jovens, trazem informação. Aprendo, não acho que sei tudo. Uma coisa positiva é que minha voz maturou, cresceu. É uma delicadeza chegar nessa idade com força e brilho na voz.

O que sentiu ao cantar com os seus filhos?

É surpresa e emoção a cada vez que entram. Na primeira, falei: "Caramba, que vozes são essas?". Maduras, afinadas. A de Esperança, então, é forte. A gente está se divertindo. É um disco despretensioso, mas o repertório vem com bom gosto. Está ficando bom.

Que tipo de avó é Elba Ramalho?

Por enquanto, é só amor. Quando ela cai nos meus braços, já sabe como dormir. É uma experiência nova, porque não é minha filha. Estou na retaguarda, com um amor intenso, mas posso dizer: "Com licença, essa noite de febre aí vocês é que vão segurar" ( risos ).

No ano passado, você completou 40 anos de carreira. Sua trajetória a deixa feliz?

Tive muitos equívocos, mais fui íntegra e verdadeira do começo ao fim. Mesmo quando ousei coisas que nada tinham a ver comigo, estava experimentando. Fui exagerada. Todo ano, um disco novo. Tive muita porta fechada, crítica, deboche, sarcasmo. Mas batalhei, sou guerreira. O que vale é olhar e dizer: "Não tenho muitas sombras pra pagar". Fui fiel ao que acreditava. Muitas coisas não eram boas, mas, no geral, acho que existe uma qualidade.

E na vida pessoal, muitos erros?

Equívocos? Milhares. Arrependimentos? Alguns, bem bons. Mas superação, também, pela fé, humildade. Não é uma coroa que fica furando a minha cabeça. Já chorei.

O que identifica como fundamental na sua criação para se tornar quem se tornou?

A educação dos meus pais. Rígida, me impô limites. Apesar de eu desobedecer, no fundo, existia um freio que vinha dessa memória afetiva. A fé também. Não é algo que peguei no ar de uns tempos para cá. Essa imagem aqui ( aponta a escultura de Nossa Senhora da Conceição ) representa minha padroeira quando criança. A gente participava das procissões. A cidade era pequena ( Conceição, no Vale do Piancó, Paraíba ). A diversão eram as festas da igreja. Minha estreia nos palcos foi no pastoril da igreja. No sertão, eram pés descalços brincando de roda, cirandas na porta de casa, a música dos repentistas, dos violeiros, dos cantores românticos como Dalva de Oliveira, Isaurinha Garcia, Augusto Calheiros. Lá em casa, tinha roda de violão toda tarde, meu pai tocava, meus irmãos cantavam...

Aí você deixou o sertão rumo ao Rio para ser atriz, com uma mão na frente e outra atrás...

Tinha 19 anos e vim com um quiteto violado chamado A Feira. Depois do show, perguntaram se eu ia voltar. Disse que não. Tinha uma maleta com livros e discos, tudo que gostava. E fiquei parada na Aires Saldanha, em Copacabana, enquanto via o ônibus do quinteto saindo para o Recife. Um casal perguntou o que eu ia fazer. Eu disse que não sabia. Me levaram para a casa deles e fiquei morando em Santa Teresa. Todo dia, pegava o bondinho e ia para o Baixo Leblon. Foi quando conheci Geraldo Azevedo, Carlos Fernando, compositor de "Banho de cheiro", Alceu Valença, reencontrei Zé Ramalho. Fui me agregando. Mas ainda fazia teatro.

Fez sucesso em "Ópera do malandro", de Chico Buarque. Quando decidiu deixar de ser atriz e virar cantora?

Nem queria ser cantora. Um produtor me viu fazendo backing com o Zé Ramalho e falou para o ( produtor ) Carlinhos Sion: "vamos investir nessa menina". Não tinha noção do que fosse disco, repertório. Depois do meu quarto disco, comecei a entender o que era ser cantora num país com ótimas vozes.

O Nordeste é frequentemente alvo de discriminação, inclusive do atual presidente. Enfrentou preconceito?

Não comento política, porque tenho total aversão. Apostei no que achava certo e não era. Parece alienação? Parece. Mas é proposital. O preconceito era maior quando cheguei. Ninguém conhecia música nordestina. Hoje, sabem que tem Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, o que é baião, xote, forró. Imagina falar de maracatu há 40 anos? Um preconceito isolado não me afeta. Já ouvi "ô, paraíba, volta para a tua terra", andando no Leblon . Hoje, há mais respeito. É lamentável que dos políticos, não. Abomino a maior parte dos políticos brasileiros.

Você se divertiu muito na vida. Como era quando subia morros para ouvir samba com Zeca Pagodinho e Almir Guineto?

Era muito amiga do Almir e sou do Zeca. A gente fazia pagode lá em casa e também subia uns morros. Era cervejinha e farra. É muita história!

Sua geração usou drogas como caminho para a inspiração artística. Como foi a sua relação com elas?

Entrava, provava, apreciava e saía. Na minha geração era tudo aberto para isso. As festas eram munidas disso. Eu era menina matuta do Nordeste, ficava com medo. Inspirava por um lado, mas nunca criei dependência. O barato é que a gente passou por essas coisas, tiramos o melhor que ofereciam e podemos dizer que não é bom.

Namorou muito?

Muito! Sempre fui namoradeira. Namorei tanto que, agora, estou dando um tempo de homem. Quando a gente descobre que somos sós, temos que exercer a liberdade sem interferências. Está sendo positivo esse tempo sozinha. Tem uns oito anos que estou sem namorar. Aprofundei minha espiritualidade, viajei o mundo, canalizei minha energia para a família, os amigos.

Sente falta de sexo?

Não necessariamente. Tenho umas histórias vez por outra, mas nada sério. Se acontecer alguém bacana, vou experimentar. Não estou fechada, ainda não estou santa, não ( risos ). Chega uma hora que isso acalma. Não falta desejo, mas passa. Não tem sofrimento, existe uma escolha. Determinei isso. O mesmo é com a sexualidade. Até minha vontade dizer: "Chega, quero dar uns beijos, agarrar". No verão, aproveito para dar umas beliscadinhas.

Vai fazer 70 anos em 2021. Está tranquila com a idade?

Não encuco porque me sinto jovem. Minhas horas de conexão me trazem paz de espírito para envelhecer. Se não tiver sabedoria para encarar que vou fazer 70 anos, morro de tédio, raiva, tristeza, desespero. Tenho que ter serenidade para não vestir a carapuça de que sou velha. Faço tudo. Corro diariamente, na areia fofa, tenho um corpo legal, saúde boa, um espírito bacana, então, tá bom.

Faria plástica? Como cuida do cabelo, sua marca registrada?

Fiz plástica 30 anos atrás. Há dois anos, tirei todos os produtos do meu rosto. Foi ótimo! Estava com a cara diferente, não gostava do que via. Meu cabelo é cheio. Às vezes, boto mega ( hair ) para encher mais. Tenho rugas, minha bunda caiu ( cantarola no ritmo da canção "Meu mundo caiu", de Maysa ). Mas é um processo natural, não vou brigar com a idade. Entendo a vida como passageira, aqui não é o final. Não vou desaparecer no universo, só mudar para o outro lado do caminho.

Você falou em arrependimentos pessoais. Agora, cada vez mais católica, pensa diferente de anos atrás. Se arrepende de ter feito um aborto, aos 22 anos?

Profundamente. Talvez seja o espinho que mais fira o meu coração. Uma experiência que não desejo para ninguém. Você pode achar que é uma solução, mas mais adiante cai uma ficha bem pesada.

A fé te ajudou a superar o câncer que teve em 2010?

Foi aí que parei meu último relacionamento. Vivi uma história confusa, carnal até a última gota. E veio o câncer de mama. Parecia que alguém tinha me dado um beliscão, dizendo "se endireite, mude". Um "preste atenção" de Deus. Era maligno. Não precisei fazer quimioterapia. Operei, refiz um pedaço da mama e virei a página. A fé me ajudou muito. Agradeci por ter oportunidade de crescer. Enquanto médicos discutiam medicação pesada, eu pensava na minha transformação. Sei que abri minha a guarda para um câncer. Pensei: "vou curar", e curei. Resolvi que, se acontecer um romance, vai ter que ser com respeito e serenidade, porque não quero ter outros cânceres, entende?

Entendo. É verdade que já viu Nossa Senhora?

É difícil explicar. Vou contar melhor em um livro sobre as experiências místicas que Nossa Senhora me deu. Não posso dizer "sou uma vidente que vê Nossa Senhora". Cada pessoa tem um encontro com Deus, quando quer e busca. Busquei tanto, que tive meu encontro pessoal com Deus através dela. Mas foi diferente. Há uns 20 anos. No livro, vou misturar biografia e o que vivenciei com o céu. Vamos ver como vou contar, porque hoje julgam tanto... Estão com o dedo apontado para o outro. Não sei se conseguirei falar tudo, mas vou tentar dizer às pessoas que Deus existe e é bom.