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Cultura

Eliana Alves Cruz traça paralelos entre o Brasil do século XVIII e o atual em novo livro

Autora de 'O crime do Cais do Valongo' aborda temas como racismo e delação premiada em 'Nada digo de ti, que em ti não veja'
A escritora Eliana Alves Cruz no Cais do Valongo Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo
A escritora Eliana Alves Cruz no Cais do Valongo Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

É 1732, mas podia ser hoje. Às vésperas de um casamento que expandirá a fortuna de sua família, um jovem herdeiro com um futuro glorioso pela frente recebe um bilhete perigoso. Quem escreveu ameaça denunciar à Corte o seu romance clandestino com uma negra transsexual. O ponto de partida do terceiro romance de Eliana Alves Cruz, “Nada digo de ti, que em ti não veja” (Pallas), que será lançado amanhã, remete a um tema atual. É a delação premiada, a mesma que Fabrício Queiroz negocia com a justiça, e que vem pautando o noticiário político nos últimos anos.

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Mas, à medida que o romance segue, surgem mais paralelos entre o século XVIII e o XXI. O Rio é descrito como uma cidade tomada por excremento e milícias. O racismo e o fanatismo religioso são os pilares dos mecanismos sociais. Nada de novo no front. Nome em ascensão no romance histórico, Eliana faz mais uma vez uma ponte com o passado, mexendo em feridas que insistem em não cicatrizar. Como em seus livros anteriores, ela olha a História pela ótica dos apagados, explorando o rico e desprezado baú da memória africana.

— É sabido que o Brasil tem problemas com sua memória — diz a escritora. — É um país que não se orgulha de ter pertencimento africano e negro. Esse apagamento se dá desde o cabelo que se alisa até as fotos que jogamos fora. E, quanto mais se apaga, mais difícil vai ficando de refazer esses espaços.

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Nascida no Rio e formada em jornalismo, Eliana estreou na literatura em 2016, aos 50 anos. Seu primeiro romance, “Água de barrela” (Malê), venceu o Prêmio Literário Oliveira Silveira, da Fundação Cultural Palmares. A autora se baseou na trajetória da própria família para resgatar as histórias de diferentes mulheres negras do Brasil Colônia até o século XX. A partir de relatos de uma tia avó esquizofrênica, que mantinha vivas as memórias de seus antepassados, ela reconstituiu 300 anos de história.

Seu segundo livro, “O crime do Cais do Valongo” (Malê) foi eleito pelo GLOBO um dos melhores de 2018. O thriller histórico em torno do assassinato de um figurão no século XIX buscou inspiração nas leituras dos jornais da época e de relatos de viajantes.

“Nada digo de ti, que em ti não veja” surgiu para aproveitar as boas histórias descobertas na pesquisa e que haviam ficado de fora do livro anterior. A trama traz todo o peso do Livro V das “Ordenações Filipinas”, um código criado no século XVI e que garantia o perdão às “penas do delator que se tivesse associado a outro em crimes que constam na norma e ainda receberiam recompensas em dinheiro”. Soa familiar?

Delação premiada e fake news

— O livro V desfila toda a misoginia, o autoritarismo, o androcentrismo e a mistura de Estado com religião que herdamos da colonização e que ainda hoje lutamos para combater — dispara Eliana. — A delação premiada está neste conjunto de leis criado há 425 anos.

O Brasil da época (?) era um bom lugar para difamadores e chantagistas. O “dedurismo” compensava — mesmo quando espalhava fake news —, lembra a escritora. Para entrar no clima, Eliana optou por um narrador misterioso, assumidamente “fofoqueiro”, que flutua como um drone pelo interior das residências, capturando intimidades de famílias poderosas e lendo a mente dos personagens.

— É algo que dialoga com o nosso tempo. Nos tornamos todos voyeurs — justifica Eliana. — O mundo da hiperconectividade dá a falsa sensação de estar adentrando todas as vidas... É uma sensação de onipotência que encoraja julgamentos, mas o narrador da história tem motivos e autorização para “bisbilhotar”.

Em meio às intrigas de poder, que se desdobram entre o Rio e Minas Gerais, o romance traz uma história de amor queer, algo raro em obras sobre esse período histórico. Destaque da trama, a transsexual Vitória maneja facas como poucos e conta com uma espécie de sexto sentido para desvendar mistérios e conseguir das pessoas o que deseja (incluindo o coração do ingênuo sinhozinho Felipe Gama).

Entre a galeria de personagens, há criações claramente inspiradas em figuras reais. É o caso de Balthazar Gama, que não por acaso tem as mesmas iniciais de Borba Gato, o bandeirante cuja estátua em São Paulo virou alvo de ativistas nas últimas semanas. Sobre a polêmica de derrubar ou não o monumento, a escritora tem uma posição clara:

— O que você acharia de passar todos os dias na frente da estátua de alguém que você sabe que violou, roubou e matou antepassados seus? Não defendo a destruição pura e simples, embora ache que algumas obras não fazem falta alguma. Penso que os museus devem ser as casas destes “heróis” feitos de bronze e lixo. Que os museus contem seus horrores.

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Eliana está aproveitando a quarentena para trabalhar no roteiro da adaptação audiovisual de “O crime do Cais do Valongo” (os direitos foram negociados com a TV Zero) e escrever uma continuação de “Água de barrela”. Muitos anos atrás, ela leu “O tempo e o vento” e ficou intrigada com a falta de um equivalente negro da saga. Agora, ao preparar mais um livro sobre seus antepassados, ela está, de certa forma, continuando seu próprio épico sobre a diáspora africana.

—Não é possível que a literatura nacional ainda ignore a força histórica ancestral que formou a nação brasileira — diz a escritora. — Embaixo do enorme tapete chamado Brasil existe outro... Que mais histórias saiam do subsolo para as prateleiras e livrarias.