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Cultura

Em 2020, mercado editorial viveu 'boom' de autores negros, mas ainda falta diversificar cadeia de produção do livro

Após fenômenos de vendas como Djamila Ribeiro, editoras prometem catálogos cada vez mais inclusivos, mas ainda reclamam da falta de tradutores não brancos
A feminista americana Audre Lorde, cuja obra foi publicada no Brasil por três editoras diferentes em 2020 Foto: Dagmar Schultz / Divulgação
A feminista americana Audre Lorde, cuja obra foi publicada no Brasil por três editoras diferentes em 2020 Foto: Dagmar Schultz / Divulgação

SÃO PAULO e RIO — Este foi o ano do "letramento antirracista". A avaliação é de Florencia Ferrari, diretora editorial da Ubu. Surpresa, ela admite ter imaginado que "Alienação e liberdade", reunião dos "escritos psiquiátricos" de Frantz Fanon (1925-1961), talvez vendesse 2 mil exemplares em um ano, no máximo. Lançado em maio, o livro já superou as 5.800 cópias vendidas. Pensador decolonial nascido nas Antilhas francesas, Fanon também é autor de "Pele negra, máscaras brancas", best-seller do ano da editora: quase 6 mil exemplares desde 20 de novembro — no início da semana, o livro tinha acabado no estoque, e a previsão era mandar imprimir de 7 mil a 10 mil novas cópias.

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Fanon é mais um dos intelectuais negros (Audre Lorde, James Baldwin , Angela Davis , bell hooks, Patricia Hill Collins etc.) cuja obra só chegou ao Brasil nos últimos anos, depois de passar muito tempo restrita apenas à academia ou circulando em "traduções de guerrilha" no movimento negro. Baldwin, autor de romances como "O quarto de Giovanni" e de ensaios sobre a problema racial nos Estados Unidos, chegou a ser editado no Brasil entre as décadas de 1960 e 1970, mas amargou longos anos fora de cátalogo até passar a ser publicado pelas Companhia das Letras. Este ano, a Ubu se juntou à Bazar do Tempo, à Relicário e à Elefante para publicar a prosa e a poesia de Audre Lorde (1934-1992), feminista negra americana que só chegou ao Brasil em 2019, quando a Autêntica publicou "Irmã outsider: ensaios e conferências". Juntas, a Bazar do Tempo e a Relicário já venderam mais de 6,2 mil cópias dos livros dela. A Elefante, que edita bell hooks por aqui, adiou a publicação para 2021.

— Todos os livros de temática antirracista lançados este ano já foram reimpressos e superaram nossas expectativas de venda — diz Florencia, para quem o "boom de autores negros" é uma resposta das editoras a "uma demanda da sociedade, do debate público". — Quando a Djamila (Ribeiro) cita Audre Lorde ou outros autores negros incríveis, seja de ficção, seja de não ficção, de poesia ou de teatro, as editoras vão atrás.

Lista dos mais vendidos

Organizadora de "Sou sua irmã", reunião de textos de Lorde publicada pela Ubu, a filósofa Djamila Ribeiro é um dos maiores fenômenos recentes: passou 2020 inteiro na lista de mais vendidos. Segundo o portal Publishnews, o seu "Pequeno manual antirracista", vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Ciências Humanas, foi o sexto livro de não ficção mais vendido no ano. Desde o início de 2020, os oito títulos da coleção "Feminismos plurais", coordenada por Djamila e editada pela Jandaíra, venderam mais de 120 mil cópias físicas e 17 mil digitais.

O primeiro volume da trilogia "Escravidão", do jornalista Laurentino Gomes , publicado pela Globo Livros, também frequentou assiduamente a lista de mais vendidos. O lançamento do segundo volume precisou ser adiado por conta da pandemia e deve ser apresentado ao público na próxima Bienal do livro, no Rio.

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A ficção de escritores negros também têm despertado interesse: chegaram ao país autores como Bernardine Evaristo , Jacqueline Woodson e Ta-Nehisi Coates . Os dois romances nacionais mais elogiados dos últimos tempos não se furtaram a cutucar a ferida racista brasileira: "O avesso da pele" , de Jeferson Tenório (Companhia das Letras), de agosto, e "Torto arado" , de Itamar Vieira Junior (Todavia), lançado em 2019 e vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos .

Se nos últimos anos as editoras até diversificaram seus catálogos (ainda majoritariamente brancos), o próximo desafio é incluir mais negros na cadeia de produção. Em julho, a Companhia das Letras contratou o historiador Fernando Baldraia como editor de diversidade , anunciou a publicação de mais autores negros e disse que levaria em conta o "critério de diversidade" para "demais contratações". Outras editoras afirmaram também ter planos de diversificar seus quadros. Para descrever suas atribuições, Baldraia recorre aos Racionais, que, na abertura do disco "Raio-X do Brasil", de 1993, afirmam que a liberdade de expressão é "um dos poucos direitos que o jovem negro ainda tem nesse país".

— Um editor de diversidade usa sua liberdade de expressão para criar o novo neste espaço mainstream que é o mercado editorial. Trazer para cá um Brasil que estava aqui antes (negro, indígena, trans etc.) e que quer se informar e denunciar, se conhecer e se divertir — diz ele, que só descobriu teóricos negros recém-publicados por aqui, como Baldwin e Fanon, quando foi estudar na Alemanha. — Lia e pensava: "eu conheço isso aqui", porque tinha aprendido tudo aquilo com Carolina Maria de Jesus, Racionais e Dona Ivone Lara.

'A voz original'

Enquanto tenta se diversificar, o mercado editorial reclama da falta de profissionais negros para traduzir toda a "intelectualidade pan-africana" que ganha espaço nas livrarias. Tradutora de Audre Lorde, Stephanie Borges é uma das profissionais mais requisitadas por editoras, que também lhe pedem indicações de colegas negros quando ela não pode aceitar um trabalho.

— No começo, muita gente achava que era preciosismo chamar um tradutor negro para traduzir um autor negro, mas logo acadêmicos começaram a pontuar erros, conceitos mal traduzidos, especialmente em textos de feministas negras — explica Stephanie. — Se não há nenhum negro envolvido na produção do livro, algumas coisas podem passar batidas, desde traduções erradas de conceitos até injúrias raciais.

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Segundo Sônia Machado Jardim, presidente do Grupo Editorial Record, “faz sentido buscar um tradutor negro para o livro de um autor negro’’ para que “a voz original não se perca’’. Ela também relativiza a suposta carência de tradutores negros.

— Desde a criação da política de cotas, saiu das universidades uma geração de pessoas negras qualificadas para trabalhar no mercado editorial — diz ela.

(Ruan de Sousa Gabriel e David Barbosa)