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Em crônica de 1994, Hilda Hilst medita sobre o abismo social no Brasil

Livro recém-lançado reúne 132 textos escritos para jornal de Campinas
Hilda Hilst em 1998: autora se isolou na Casa do Sol, chácara em Campinas, para escrever Foto: Roberto de Biasi / Agência Estado
Hilda Hilst em 1998: autora se isolou na Casa do Sol, chácara em Campinas, para escrever Foto: Roberto de Biasi / Agência Estado

É inadmissível que até mesmo pessoas tidas como inteligentes, cultas, ainda rotulem de “comunistas”, de “esquerda festiva” aqueles que ficam indignados diante da extrema miséria em que vivem quarenta e dois milhões de brasileiros! Isso me deixa colérica. Quer dizer que não é pra se indignar? É pra deixar que poucos enrabem muitos, que “é assim mesmo a vida”, uns nasceram para ser enrabados e outros para enrabar?

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Aliás, agora me lembrei da fala de um então ministro de Estado (1968) quando lhe perguntaram por que as empresas nacionais deviam pagar cinquenta por cento de juros pelos créditos que conseguiam com dificuldade dentro de seu país. O então ministro respondeu: “Obviamente o mundo é desigual. Há quem nasce inteligente e há quem nasce burro. Há quem nasce atleta e há quem nasce aleijado; o mundo se compõe de pequenas e grandes empresas. Uns morrem cedo, no primor da vida; outros se arrastam, criminosamente, por uma longa existência inútil. Há uma desigualdade fundamental na natureza humana, na condição das coisas. A isto não escapa o mecanismo do crédito. Postular que as empresas nacionais devam ter o mesmo acesso que as empresas estrangeiras ao crédito externo é simplesmente desconhecer as realidades básicas da economia...”.

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Então é isso, negada: nasceu pobre, f..., foi Deus quem quis. Tá com fome? E... Uns “comem”, outros não; é coisa de “karma”, né, negada? Tá sem teto? Chato, né, mas f... também! E até mesmo a Igreja, que sempre foi puxa-saco de reis, quando resolve dar um palpitinho mais ansioso, cai todo mundo matando: comunista! esquerda festiva! E pau nos padrecos!

Vem dar uma olhada no mundo, vem, Jeshua. Vem ver o orangotango raivoso que engoliu o homem! Experiência inútil, meu querido, esta tua cruz e teus gemidos. Lembra-te, amado, quando Satanás te mostrou todos os reinos do mundo com seu esplendor e te disse:

“Todas estas coisas te darei se prostrado me adorares” (Mateus; 4,9). Gente! O mundo todo é do demo desde sempre. Nem Jeshua o quis! Pois se o tomasse para si estaríamos todos num paraíso terrestre. E este, sim, teria sido o grande sacrifício! Mas continua tudo igual, o mundo todo é do demo, fofos!

Tá sem teto? E... Tá com fome? Também! Amém. Estas são as respostas que esperam de nós diante da miséria humana, da ferocidade, do dissoluto sem nome que há no homem. Tá morrendo, cara? E..., espera, o Brasil ganhará o Tetra! Aí, sim, vai ser tão bão! Né, negão?

E cuidado, madamas: não pensem muito, que isso de pensar acentua as rugas! Comam vossos churrasquinhos e os brioches do amanhã também. Bom domingô, ou “Bom dimanche”, como diria, antes “daquilo”, Monsieur Guillotin.

(domingo, 5 de junho de 1994)