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Cultura

Em 'A débil mental', argentina Ariana Harwicz cria narrativa sobre mãe e filha longe do verniz civilizatório

Novela é segunda parte da "trilogia da paixão" - não a do dicionário, mais para "A paixão segundo G.H." de Clarice Lispector

Uma casa no campo rodeada pela natureza pode ser um cenário promissor tanto para uma história idílica quanto para uma história sombria. Mas quem leu o romance anterior da escritora argentina Ariana Harwicz — o elogiado “Morra, amor” — deve suspeitar que não encontrará nada do imaginário bucólico romântico no livro “A débil mental”. O estilo da autora foi associado ao de David Lynch no cinema, mas ela me parece mais próxima do sadismo lírico que encontramos no cineasta dinamarquês Lars von Trier, de “Anticristo” .

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Publicado originalmente em 2014, "A débil mental" chega ao Brasil com ótima tradução de Francesca Angiolillo. Narrada em primeira pessoa por uma mulher de cerca de 30 anos que vive com a mãe no interior da França (e usa a expressão do título para falar de si mesma), a novela é mais uma espécie de agrupamento de frases do que um fio narrativo. Ainda assim, do meio de um novelo embolado, é possível inferir o enredo: as duas mulheres compartilham a vida numa relação íntima e violenta, quando a filha se apaixona por um homem casado. A dupla de mãe e filha quase se insere em um triângulo amoroso, ao molde freudiano, que, todavia, não pode se concretizar. “Quero jogar longe minha infância como essas bolas que as corujas cospem com restos de dentes e cérebros que não conseguiram deglutir”, diz a narradora, que, no entanto, também não consegue.

Sucessão de náuseas

Em conjunto com “Morra, amor” e “Precoce” (com lançamento nacional estimado para 2021), a novela forma o que a autora chamou de “trilogia da paixão”. São livros que retratam núcleos familiares conturbados, com destaque especial para a questão da maternidade, que tem sido bastante tensionada na literatura contemporânea. Mas, na obra de Harwicz, mais do que as relações, é a própria linguagem que ocupa o papel central.

Também vale chamar atenção para o fato de que a paixão em Harwicz não é propriamente a paixão que encontramos no dicionário, a paixão do senso comum. Talvez seja mais uma espécie de prima de “A paixão segundo G.H.” (1964), romance de Clarice Lispector. Mas, enquanto Clarice se concentra num gesto impensado — quando a narradora come a secreção de uma barata, vivenciando uma crise existencial—, em “A débil mental” temos uma sucessão de náuseas, de modo que o grotesco quase se banaliza pela ausência de contraste.

Harwicz recorre, com escatologia e fúria, a uma certa animalidade das personagens, uma recusa do verniz civilizatório, adentrando um estado feroz e perigoso. Entre muitas imagens poéticas, a novela vai sendo narrada verborragicamente pela filha, que está numa posição tão masoquista quanto sádica, pois tem prazer em esfregar as vísceras na cara dos leitores.

Há quem possa se repelir ao encontrar um terreno tão revirado e malcheiroso, mas a autora parece se divertir com um material que, para muitos, soaria repulsivo. Quem suportar a vertigem pode encontrar no caminho frases tão bonitas que resistem ao excesso que se multiplica em volta. É preciso tomar fôlego em meio ao lodo para recolhê-las, mas, quando surgem — estranhamente limpas — é difícil ignorá-las.

Ler “A débil mental” é como se pudéssemos acompanhar uma subjetividade em colapso, assistindo a todo tormento que a acompanha. Ariana Harwicz é uma escritora talentosa e ambiciosa, que gosta de provocar e incomodar. E, mais uma vez, mostra a que veio, ainda que aqui o processo soe mais gratuito e menos bem executado do que em seu livro de estreia.