Exclusivo para Assinantes
Cultura

Em 'Máquinas como eu', Ian McEwan discute dilemas éticos do avanço tecnológico

'Estamos nos afogando na irracionalidade', diz autor inglês, que lança novo romance no Brasil
O escritor inglês Ian McEwan, autor de 'Máquinas como eu' Foto: LAUREN FLEISHMAN / Lauren Fleishman/The New York Times
O escritor inglês Ian McEwan, autor de 'Máquinas como eu' Foto: LAUREN FLEISHMAN / Lauren Fleishman/The New York Times

SÃO PAULO – "Nada comprovou mais vividamente a máxima de que a tecnologia torna frágil a civilização do que os grandes engarrafamentos de trânsito no final da década de 1970”, diz Charlie, o narrador de “Máquinas como eu” , novo romance do escritor inglês Ian McEwan . Apesar do comentário ácido, Charlie é um devoto da ciência e torra uma fortuna para comprar Adão, um dos primeiros seres humanos artificiais lançados naquele 1982.

CRÍTICA: Deu a louca no Ian McEwan

Sim, “Máquinas como eu” se passa em um 1982 alternativo: a Inglaterra perdeu a Guerra das Malvinas, os Beatles ainda lançam discos, carros sem motorista ocupam as estradas e Alan Turing (o cientista da computação que se matou em 1954 porque a homossexualidade era crime no Reino Unido), está vivo e é saudado como o gênio da revolução tecnológica.

“Os romances dão carne e osso a dilemas morais porque dão acesso à consciência dos personagens e mostram a vida como imaginamos que pode ser ”

Ian McEwan
Escritor inglês

McEwan, outro defensor incondicional da razão, aproveita a desconfortável relação de Charlie, seu robô Adão e sua vizinha e quase namorada Miranda para discutir os dilemas éticos impostos pelo avanço da inteligência artificial. Nesta entrevista por telefone ao GLOBO, McEwan reivindica a ciência para combater o populismo e duvida que robôs possam um dia produzir boa literatura.

Por que escrever um romance que se passa num 1982 alternativo, tecnológico e futurista?

Eu queria Alan Turing vivo e não tão velho para fazê-lo patrono da era digital. O passado recente poderia facilmente ter sido diferente. O presente é um construto frágil, uma extraordinária e imprevisível coincidência. Eu quis brincar livremente com minha imaginação. Temos trens velocíssimos, mas lotados e com janelas imundas. Há voos baratos para qualquer lugar, você pode ir do Rio a São Paulo em menos de uma hora, mas sua rotina ainda é tediosa. Ainda que tenhamos máquinas incríveis, nossa vida segue sendo uma bagunça E, se todas essas máquinas não pertencessem ao presente ou a um futuro brilhante, mas a um passado complicado e familiar? Imaginar esse passado alternativo foi muito divertido. Tive que me controlar porque estava virando uma obsessão.

O senhor há tempos é fascinado pela ciência. Por que escrever um livro sobre inteligência artificial agora?

Comecei a me interessar por inteligência artificial nos anos 1970, após escrever um filme para a BBC sobre máquinas que pensavam. Passei as décadas seguintes obcecado pelo tema, mas foi uma longa decepção porque a ciência ainda não entedia os processos complexos por trás de interações aparentemente simples, como pegar uma bola ou levar uma xícara à boca. Houve avanços incríveis. Logo as ruas estarão cheias de carros sem motoristas. Para projetá-los, precisaremos decidir como esse carro vai se comportar em emergências. As máquinas terão de tomar decisões: sacrificar motorista ou pedestre? Estamos às vésperas de entregar decisões morais a máquinas. Se projetássemos um ser humano artificial, daríamos a ele nossas melhores ideias e princípios morais. Sabemos como ser bons, mas também que é difícil ser bom o tempo todo. Somos preconceituosos e às vezes perdoamos o imperdoável por amor. Talvez as máquinas possam ter uma inteligência superior à nossa e uma moral menos maleável.

O escritor inglês Ian McEwan, autor de "Máquinas como eu" Foto: Urszula Soltys / Divulgação
O escritor inglês Ian McEwan, autor de "Máquinas como eu" Foto: Urszula Soltys / Divulgação

“Máquinas como eu” discute como a tecnologia pode tornar a sociedade mais frágil. O senhor mantém sua fé na ciência e na razão?

Passei a vida escrevendo livros para persuadir as pessoas de que a razão não é fria, mas calorosa e não se opõe à benevolência. Hoje, enfrentamos problemas graves. Há uma tempestade perfeita de ascensão populista e crise climática. A política enlouqueceu. Os populistas dizem que o aquecimento global é uma trama dos governos para controlar as pessoas. Justo quando temos condições de unir nações para lidar com as mudanças climáticas, temos populistas gritando no Reino Unido, nos EUA, no Brasil, no mundo todo! Estamos vendo a irracionalidade se espalhar pelo planeta quando mais precisamos cooperar para salvar as florestas e impedir o aumento do nível dos oceanos. É este o problema: estamos nos afogando na irracionalidade.

E como deter essa onda de irracionalidade?

Precisamos defender a razão, reafirmar nosso compromisso com uma sociedade aberta, tolerante, curiosa e justa e pressionar por governos que trabalhem por todos, não só pelas elites.

Adão diz que, num mundo racional controlado por androides, a literatura será redundante “porque nos entenderemos uns aos outros bem demais” e só sobrarão os haikus. O senhor concorda?

Não. Imaginar que, se pudéssemos entender as mentes uns dos outros, não haveria mais desentendimentos é uma teoria extravagante e adolescente. A literatura sempre será essencial para discutir questões éticas, tirá-las da abstração e colocá-las no calor da experiência humana. Os romances dão carne e osso a dilemas morais porque dão acesso à consciência dos personagens e mostram a vida como imaginamos que ela pode ser. Nenhum texto filosófico ou jornalístico pode dar tanta vida a uma questão quanto um romance.

Como os avanços tecnológicos estão afetando a literatura? Robôs serão capazes de escrever bons romances?

Se um computador for capaz de escrever um bom romance, teremos que concluir que ele já é capaz de pensar, que tem algum tipo de consciência, porque a literatura exige um profundo entendimento dos motivos humanos, da alegria e tristeza, do amor e ódio. Não somos só intelecto. Somos um intelecto em um corpo. É difícil que um programa de computador entenda o que é ter corpo. Acho que ainda estamos longe de ler um bom romance escrito por um máquina. Talvez escrever um romance seja um bom teste para ver se uma máquina desenvolveu consciência

Capa de 'Máquinas como eu', novo romance do escritor inglês Ian McEwan Foto: Divulgação
Capa de 'Máquinas como eu', novo romance do escritor inglês Ian McEwan Foto: Divulgação

“Máquinas como eu”
Ian McEwan
Traduçãor: Jorio Dauster
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 304
Preço: R$ 54,90

Leia trecho do livro:

"Era uma aspiração religiosa abençoada pela esperança, era o Santo Graal da ciência. Nossas ambições eram tão sublimes quanto mesquinhas — a realização de um mito da criação, um monstruoso ato de amor-próprio. Tão logo se tornou factível, não nos restou alternativa senão perseguir aquele objetivo sem pensar nas consequências. Em termos mais elevados, tínhamos como meta escapar de nossa mortalidade, confrontar ou mesmo substituir a divindade por um eu perfeito. Do ponto de vista prático, tencionávamos criar uma versão melhorada e mais moderna de nós mesmos, exultando com a alegria da invenção e a excitação da maestria. No outono do século xx, isso por fim aconteceu, os primeiros passos rumo à realização de um velho sonho, o início de uma longa lição em que nos ensinaríamos que, por mais complicados que fôssemos, por mais defeituosos e difíceis de descrever em nossas ações e comportamentos menos complexos, podíamos ser imitados e aperfeiçoados. E lá estava eu, ainda jovem, um dos primeiros e ávidos entusiastas naquela frígida alvorada.

"Mas como os seres humanos artificiais representavam um lugar-comum muito antes de se tornarem realidade, quando isso aconteceu eles foram para alguns um desapontamento. A imaginação, mais rápida que a história e o progresso tecnológico, já havia ensaiado o futuro em livros e, mais tarde, em filmes e séries de televisão, como se atores humanos — caminhando com um olhar meio vidrado, movimentos fajutos da cabeça e certa rigidez na coluna vertebral — pudessem nos preparar para conviver mais adiante com nossos primos.

"Eu estava entre os otimistas, favorecido pelos recursos inesperados que se seguiram à morte da minha mãe e à venda da casa da família, por sorte localizada numa área valorizada. O primeiro ser humano artificial verdadeiramente viável — com inteligência e aparência plausíveis, movimentos corretos e mudanças de expressão — foi posto à venda uma semana antes que a Força-Tarefa das Malvinas se lançasse ao mar para sua fracassada missão. Adão custou oitenta e seis mil libras. Levei-o numa caminhonete alugada para meu pouco acolhedor apartamento no norte de Clapham. Eu tinha tomado uma decisão imprudente, porém me sentia encorajado pela notícia de que Sir Alan Turing, herói de guerra e o maior gênio da era digital, havia adquirido o mesmo modelo. Ele provavelmente queria desmontá-lo em seu laboratório a fim de examinar em profundidade como funcionava.

"Doze exemplares dessa primeira edição se chamavam Adão, treze se chamavam Eva. Piegas, todos concordavam, mas comercialmente eficaz. Como as noções de raça biológica tinham sido cientificamente desacreditadas, os vinte e cinco foram projetados de modo a abarcar um largo espectro étnico. Houve rumores, e depois reclamações, de que não se podia distinguir o árabe do judeu. A programação randômica e a experiência existencial permitiam uma grande latitude em matéria de preferência sexual. No final da primeira semana, todas as Evas tinham sido vendidas. À primeira vista, eu poderia considerar meu Adão um turco ou um grego. Como pesava setenta e sete quilos, tive de pedir à vizinha do andar de cima, Miranda, que me ajudasse a carregá­ -lo na maca descartável fornecida juntamente com o produto.

"Enquanto suas baterias eram carregadas, fiz café para nós dois e, no computador, passei os olhos pelas quatrocentos e setenta páginas do manual de instruções. A linguagem era em geral clara e precisa. Mas tendo Adão sido criado por várias empresas, vez por outra as instruções refletiam o encanto de uma poesia do absurdo. 'Descubra a parte superior do colete do B347k a fim de obter fácil acesso à placa-mãe e assim atenuar a penumbra das mudanças de estado de espírito.'"