Exclusivo para Assinantes
Cultura literatura

Em novo livro, Daniel Galera flerta com a ficção científica para investigar o apocalipse

Nas três novelas reunidas em 'O deus das avencas', escritor se volta para o passado político recente e para o futuro para descrever como o mundo não acaba com 'uma virada climática, um asteroide ou doença que mata a maior parte da Humanidade’, mas aos poucos, dia após dia
O escritor Daniel Galera. Ele crê que levar a História para o domínio da imaginação e da arte permite refletir para tomar decisões no presente Foto: Marco Antonio Filho / Divulgação
O escritor Daniel Galera. Ele crê que levar a História para o domínio da imaginação e da arte permite refletir para tomar decisões no presente Foto: Marco Antonio Filho / Divulgação

Daniel Galera chegou a chamar de “pré-apocalíptico” seu último romance, “Meia-noite e vinte” , lançado em 2016, retratando as angústias da geração que, adolescente, esperara o bug do milênio e, uma década e meia depois, percebeu que o mundo outra vez ameaçava acabar. Já naquela época, Galera questionava a imagem, popularizada pela ficção científica e pelo cinema, do apocalipse como um único evento de proporções bíblicas capaz de pôr termo à civilização como a conhecemos. O apocalipse, suspeita o escritor, é um processo já iniciado e ainda sem data para terminar.

Bernardo Carvalho: 'Literatura é lugar de risco, não de fala'

— Não é uma virada climática súbita, um asteroide ou uma doença que do dia para a noite mata a maior parte da Humanidade. Ele se espalha no tempo e no espaço — diz Galera ao GLOBO, por telefone, de Porto Alegre. — Não é o fim de um mundo e o começo imediato de outro, mas um longo processo de transição e mudanças aceleradas que já estamos vivendo.

Toque de cultura pop

Em seu novo livro, “O deus das avencas”, Galera reúne três novelas que se desenrolam no meio de um apocalipse às vezes parecido, às vezes não, com o fim do mundo inventado pela cultura pop. A primeira, cujo título é emprestado e remete à canção “Pelos olhos”, de Caetano Veloso , se passa no fim de semana do segundo turno da eleição presidencial de 2018 e acompanha um casal que aguarda a chegada do primeiro filho. Quando Manuela sente as primeiras contrações, na tarde de sexta-feira, Lucas desconecta a internet e promete só voltar para a bolha on-line após dar o primeiro banho no filho.

Na novela do meio, “Tóquio”, o autor flerta com a ficção científica e imagina uma São Paulo futurista, onde a elevação da temperatura causou o colapso da produção de alimentos, que passaram a ser cultivados em apartamentos de luxo, e as sucessivas pandemias forçaram a população a usar máscaras e chips de vacinação. O narrador frequenta uma terapia de grupo para familiares de pessoas que transplantaram suas consciências para os mais diversos dispositivos eletrônicos, como fez a mãe dele, uma capitalista de risco que não se incomodava em colaborar com governos autoritários.

Joca Reiners Terron: 'Meus livros não têm condições de competir com as bizarrices que Bolsonaro fala em seu cercadinho'

A última, “Bugônia”, se passa num futuro ainda mais distante, no qual uma pequena comunidade depende do mel que as abelhas fabricam a partir de cadáveres para se proteger de superbactérias que dizimaram parte da população.

Sidarta Ribeiro (neurocientista, autor de “O oráculo da noite”) me disse que eram três novelas sobre malfadadas tentativas de fuga: do entorno político, do próprio corpo e do planeta — repete Galera. — Talvez sejam novelas sobre nossa incapacidade de fugir do apocalipse. Temos que enfrentar esses processos, pensar em maneiras de revertê-los ou, em alguns casos, conviver com eles.

O escritor estreou com o livro de contos “Dentes guardados”, publicado em 2001. De lá para cá, publicou cinco romances e um álbum em quadrinhos (“Cachalote”, em parceria com o desenhista Rafael Coutinho). Toda vez que lança um novo romance, o escritor promete que o livro seguinte será uma coletânea de contos. No entanto, sempre havia uma história que insistia em se alongar. Ele também andava suspeitando de que o romance realista talvez já não fosse mais capaz de narrar o presente.

— Terminei “Meia-noite e vinte” exausto, sentindo, pela primeira vez, que romance tradicional tinha ficado redundante, impotente, e não dava mais conta da nossa realidade — explica. — Sempre fui leitor de ficção científica, mas sentia não ter habilidade. Aos poucos, fui descobrindo a forma do livro, até chegar a essas três novelas, que são um exercício de imaginação de caminhos possíveis a partir de tendências do momento presente e de pensar como elas afetam nossos corpos, cabeça, relações e sonhos.

Sidarta Ribeiro: Sonhos podem ajudar a prever futuro

Galera havia prometido concluir a primeira redação das três novelas de “O deus das avencas” ainda em 2020, mas acabou botando o ponto final no manuscrito em 1º de janeiro deste ano. Escrever durante a pandemia o obrigou a conceber futuros apocalípticos que parecessem desdobramentos do nosso presente.

Embora as três novelas de os “O deus das avencas” sejam independentes, alguns temas se repetem, e a última talvez esboce uma solução para um problema apontado na primeira. Manuela decide não avisar seus pais que está prestes a dar à luz porque eles pretendiam votar no candidato simpático ao autoritarismo do passado. Já em “Bugônia”, o desafio é “fazer aliados”. As duas lideranças da comunidade, todavia, divergem quanto às estratégias. Uma delas, a Velha, afirma que “o passado reforça a identidade, e a identidade é o veneno da comunidade”. Já Alfredo se esforça para preservar os livros que restaram e diz que “sem lembrança não saberemos evitar os erros e tentações que conduziram às catástrofes”.

Dose de malefícios

Contrapor duas posições divergentes leva à constatação de que a realidade nos obriga a oscilar entre um polo e outro e a nos posicionar melhor diante do presente, diz Galera.

— O Brasil já teve sua dose se malefícios causados pelo esquecimento e por distorções da História, o que, hoje, temos que combater mais do que nunca. Por outro lado, entendo a simplicidade utópica da Velha, de querer viver apenas no presente. A ficção nos permite trazer a História para um outro domínio, o da imaginação, da arte, onde podemos refletir sobre seus desdobramentos e descobrir pistas que nos ajudem a tomar decisões no presente.

Capa de "O deus das avencas", novo livro do escritor Daniel Galera, publicado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "O deus das avencas", novo livro do escritor Daniel Galera, publicado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"O deus das avencas"

Autor: Daniel Galera. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 248. Preço: R$ 54,90.