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Cultura

Em suas ‘anotações’, russo Mikhail Bulgákov mostra atenção ao detalhe e pendor pelos devaneios

Contos abrem caminho para o realismo fantástico da obra-prima posterior do autor, ‘O mestre e Margarida’
Retrato do autor Mikhail Bulgákov Foto: Heritage Images / Heritage Images/Getty Images
Retrato do autor Mikhail Bulgákov Foto: Heritage Images / Heritage Images/Getty Images

O escritor russo Mikhail Bulgákov (1891-1940), autor do célebre romance “O mestre e Margarida” (a história de um passeio do diabo pela Moscou dos anos 1930), foi também um produtivo escritor de contos, como atesta o volume “Anotações de um jovem médico”. O livro conta com narrativas nas quais predomina o elemento autobiográfico e memorialístico, uma vez que o próprio Bulgákov se formou médico, trabalhando no interior da Rússia no caótico período que abarca a Primeira Guerra Mundial, a Revolução de 1917 e a Guerra Civil.

As “anotações” de Bulgákov unem-se a um vasto ramo da história da literatura feita por médicos-escritores, um panteão que vai de Keats a Conan Doyle, passando por Jorge de Lima, Lobo Antunes e Moacyr Scliar. Suas histórias mostram a atenção ao detalhe compartilhada pelas duas profissões, além de uma preocupação com o destino dos personagens que encontra, oscilando entre a esperança e a resignação. “De noite, naquela névoa instável, eu via operações malsucedidas, costelas expostas, e as minhas próprias mãos cobertas de sangue humano”, escreve Bulgákov no conto “Tempestade de neve”, e continua: “Parando ao lado de uma cama em que jazia um doente derretendo de febre e respirando lastimosamente, eu olhava as pupilas, batia de leve nas costelas, escutava o coração bater misteriosamente nas profundezas e trazia em mim um único pensamento: como salvá-lo?”.

Em suas narrativas sobre sua experiência como médico, Bulgákov ainda está preparando o terreno para a emergência do realismo fantástico de sua obra-prima posterior, “O mestre e Margarida”. O humor característico dessa obra ocupa um espaço menor nos contos, que dão ênfase às dificuldades cotidianas da profissão e às condições por vezes inacreditáveis da população rural da Rússia: “do alpendre eu ouvi um menino choramingando, envolto em trapos. É claro que ele tinha uma perna quebrada, e eu e o enfermeiro passamos duas horas engessando a perna do menino, que uivou as duas horas inteirinhas”, escreve Bulgákov em “O olho desaparecido”. Aqui e ali, contudo, a fantasia se faz notar, especialmente em sonhos e delírios induzidos por medicação, por doença ou pelo pendor característico do narrador aos devaneios: “E o sono doce após uma noite trabalhosa me capturou. Aquela treva digna da praga do Egito estendera-se como uma cortina... e, nela, eu como que segurava... um misto de espada e estetoscópio. Vou... lutarei... No fim de mundo. Mas não sozinho”.

Tudo de novo no front

A impressão mais duradoura oferecida pelos contos de Bulgákov é a de um dinamismo narrativo. Nenhum dia é igual ao outro e a experiência cotidiana do jovem médico está em permanente confronto com aquilo que aprendeu na universidade, com seus dias de tranquilidade na cidade grande e suas próprias ambições para o futuro. O desamparo do narrador é motivo tanto de riso quanto de lágrimas, e suas agruras são sempre ambivalentes, podendo servir de combustível para a ação e também para lamúrias. “Lancei-me no fundo do trenó, enrodilhei-me, para que o frio não me devorasse tão avidamente”, escreve ele em “O olho desaparecido”, “e enxerguei a mim mesmo como um pobre cachorrinho, um cão desajeitado e sem lar”.

Esse “cão desajeito” se mostra, no entanto, muito hábil em registrar suas experiências, do cuidado com os camponeses até sua participação ativa durante a Guerra Civil — centro da narrativa mais forte do volume, intitulada “Eu matei”.

As “anotações” de Bulgákov apresentam uma expansão de alta qualidade a uma obra que “O mestre e Margarida” já havia estabelecido como de primeira grandeza.

Kelvin Falcão Klein é professor de Letras da UniRio.

Serviço

“Anotações de um jovem médico e outras narrativas”

Autor: Mikhail Bulgákov Editora: 34 Tradução: Érika Batista Páginas: 216 Preço: R$ 54 Cotação: ótimo