Cultura

Emicida, sobre novo disco: ‘O mais urgente a se fazer é que a música soe como um abraço’

Rapper lança ‘AmarElo’, que traz homenagem com melodia inédita de Wilson das Neves, poema lido por Fernanda Montenegro e postura menos combativa
Emicida lança seu terceiro disco, 'AmarElo' Foto: Divulgação / Julia Rodrigues
Emicida lança seu terceiro disco, 'AmarElo' Foto: Divulgação / Julia Rodrigues

RIO — Emicida gosta de ver “AmarElo” , seu terceiro disco de estúdio que chegou na noite desta quarta-feira às plataformas digitais, como um experimento social. A partir dele, o músico de 34 anos quer provar que a música pode, de fato, transformar os lugares, e assim conduzir o rap ao “panteão da grandiosidade da música feita no Brasil”.

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Para isso, o paulistano optou por abrir mão de alguns lugares comuns da cultura hip-hop — mais do que tinha feito em “Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa...” (2015), seu álbum anterior —, como as observações políticas.

“AmarElo” é, então, um disco de neo-samba, como Emicida prefere rotular (“minha referência é mais Luiz Carlos da Vila do que J. Cole”), com uma série de participações especiais, dentre elas Fernanda Montenegro , Zeca Pagodinho , Marcos Valle e Pabllo Vittar . Abaixo, ele explica mais tal conceito.

Por que você vê o disco como um experimento social?

Mais do que conceber uma carreira, eu tenho uma causa, que transcende simplesmente um produto que a indústria vende. Essa construção se compõe com base em um monte de outras coisas que não são apenas musicais. Livro, as turnês em si, desfile de moda, documentário... Isso vai reverberando de maneira a ter consequência na vida real e fazer as pessoas, principalmente aquelas que têm origem parecida com a minha, acreditarem que é uma possibilidade transformar a partir do acreditar, e esse acreditar nasce na música. É possível de fato transformar os lugares com música? E a nossa resposta é sim.

Na faixa "Principia", você usa fé como leme, com participação do Pastor Henrique Vieira e Pastoras do Rosário. E recentemente tivemos Kanye West lançando um disco gospel , mas "Principia" traz uma cara brasileira, das religiões de matizes africanos. Enquanto a cultura negra e a religião têm uma ligação muito forte nos EUA, aqui o candomblé e a umbanda são por vezes mal vistos e perseguidos na periferia. Por quê?

A gente tem uma diferença abissal entre as duas realidades. A expressão, o cantar na intenção de se conectar com a espiritualidade mais profunda, ele de fato está presente nos dois ambientes, assim como em todas as sociedades existentes. O que acontece é que o preto norte-americano foi destituído de uma parte fundamental de sua espiritualidade, que é o tambor. Ele transfere a sua manifestação pelo canto, numa forma de lamento.

No Brasil, por mais que houvesse uma perseguição por parte do Estado, você não conseguiu destituir o preto brasileiro do seu vínculo com o tambor. A religiosidade afro-brasileira existe em torno do tambor, seja no candomblé, na umbanda, no catolicismo popular, que guarda muitas das referências dos santos de pele escura. A música sacra brasileira é preta, o que não significa que outras manifestações de música sacra no país não existam. Assim como qualquer manifestação artístico-cultural das pessoas de pele escura, ela sofre uma perseguição, e eu acho que o país perde muito. Porque perde a incrível oportunidade de conhecer assim mesmo.

A MC Tha, que participa de "A ordem natural das coisas", se destaca exatamente por unir a umbanda ao funk .

A MC Tha faz isso de um jeito muito bonito, trazendo para o hoje, inclusive. Mostrando que não é uma coisa que fica na nossa memória. Essa espiritualidade está viva hoje, está quente, e é fundamental para que a gente compreenda onde o Brasil pode dar certo.

Ainda em "Principia", tem um verso que chama atenção: "No caminho da luz, todo mundo é preto". O que você quis dizer nele?

Imagina que o disco inteiro é concebido como se fosse um filme. Num momento dele, o personagem principal está caminhando em sentido à luz e você está em segundo plano. Então, a luz engole a pessoa e ela se torna uma silhueta escura. Essa brincadeira com a palavra tem um sentido mais profundo. Qualquer um que pesquise hoje sobre a origem da humanidade descobre que ela começou na Etiópia, no continente africano. Há 3,2 milhões de anos atrás. A luz também é usada como uma metáfora de sabedoria, a iluminação, o iluminismo. Tudo isso é atrelado a sabedoria. Então foi a forma mais bonita e simples que encontrei de dizer que qualquer um que queira e consiga se transformar numa pessoa mais inteligente e iluminada compreende que sua origem, no fundo, é africana.

Sua poesia em “AmarElo” é quase nula em prepotência, sendo que a autoconfiança exacerbada é uma marca forte do hip-hop. Por que você prefere esse outro caminho?

Eu já passei por ele demais. A gente teve que criar uma casca de superpoder porque tivemos a vida inteira um alvo na nossa testa e no nosso peito, na mira de uma sociedade que não tem problema nenhum em matar a gente. Quando me dou ao direito de louvar a vida, gostaria que as pessoas se conectassem com as coisas simples dela. O mais urgente a se fazer é que a música soe como um abraço.

"Pequenas alegrias da vida adulta" tem o piano do Marcos Valle, uma mente criativa da nossa música exaltada para além das fronteiras da música brasileira. Como foi ter a possibilidade de tê-lo criando algo original, e não sampleando?

Eu estava fazendo duas músicas para ele. Só isso aí já era um sonho (risos). Escrevi duas letras para o próximo disco dele, e aí fiquei meio com vergonha de pedir para ele botar um piano no barato. Um dia, eu tomei coragem e falei “ô Marcos, você não deixava um piano para nós aqui, não?”. Porque a música estava muito vinculada ao gospel americano, o piano levava para isso. E não era isso que a gente queria. Quando eu faço esse convite e o Marcos topa de bate-pronto, ele chega no estúdio naquele Rhodes numa sutileza tão bonita que entrega para a música o Brasil que a gente estava procurando, trazendo para nossa realidade. Ficamos emocionados. Nós temos o Marcos Valle no WhatsApp. Vencemos!

Por falar nisso, fala um pouco sobre sua relação com o mestre Wilson das Neves. O quão perto vocês estiveram de gravar um material juntos? E ter o Zeca, que chegou a se apresentar com o Wilson, foi a homenagem possível a ele?

Essa música a gente começou juntos, mas a letra falava de uma coisa completamente diferente. Era uma reflexão a respeito de poesia, pura e simplesmente. Quando ele vem a falecer, fiquei com essa letra pendurada na parede de casa. Ele tinha me mandado um fita cassete com a melodia, por não usar WhatsApp. Peguei a melodia e decidi fazer uma homenagem a ele. Eu queria muito construir uma música com gente que amou demais ele em vida, que teve a oportunidade de estar ao lado dele como amigo ou que era fã extremo da obra. O Zeca não só é uma pessoa com quem seu Wilson tocou, mas a última vez que seu Wilson tomou uma cerveja foi com Zeca Pagodinho. É uma grande forma de dizer a ele obrigado por ser esse orixá em vida que a gente teve a honra de conhecer.

Emicida cercado por símbolos que o inspiram: a fé, os ritmos, o verso e os mestres, representados por Wilson das Neves, que enviava músicas para o rapper via fita cassete Foto: Divulgação / Julia Rodrigues
Emicida cercado por símbolos que o inspiram: a fé, os ritmos, o verso e os mestres, representados por Wilson das Neves, que enviava músicas para o rapper via fita cassete Foto: Divulgação / Julia Rodrigues

Foi-se o tempo em que precisávamos conectar o hip-hop diretamente a uma veia combativa?

Também já fiz isso muitas vezes. Hoje encontro coisas mais grandiosas, que me inspiram a compor. As pessoas se movem baseadas em signos muito simplórios e elas acabam sendo levadas para o abismo, onde a gente encontra essa situação catastrófica na qual estamos imersos nos dias de hoje no Brasil. Nós temos um culto extremamente doentio ao agora, e assim a gente se desconecta das belezas das histórias. Talvez em nenhum outro tempo as pessoas desrespeitaram tanto sua relação com os sonhos.

Até porque a arte baseada no agora dificilmente perdura...

A minha meta é ser para sempre. Wilson das Neves (homenageado e autor da melodia da faixa “Quem tem um amigo (tem tudo)”) é para sempre, e eu estou tentando ser para sempre. Eu escuto músicas que foram feitas nos anos 40, 50, 60, 70. O que me encanta nelas é a busca nobre de cada um desses artistas de compartilhar o seu melhor de uma forma grandiosa com o ouvinte, e eu quero fazer a mesma parada. Humildemente, o que eu estou tentando fazer é um disco que seja um presente para os meus ídolos.

Agora sobre "Ismália", que é a faixa mais carregada de emoção do disco. Você lembra da ocasião em que se deparou com o poema do Alphonsus de Guimaraens pela primeira vez?

Conheci esse poema porque minha mãe teve que voltar a estudar quando meu pai faleceu. Ela trabalhava em três casas de família, mas insistiu em voltar a estudar para melhorar de vida. A leitura da minha mãe era ruim, e para entender ela tinha que ler em voz alta. A gente conheceu a literatura do Brasil através da leitura em voz alta da minha mãe. Um dos poemas é “Ismália”, e foi a primeira vez que eu ouvi.

E como chegou a essa leitura de que seria uma metáfora sobre como é ser negro no Brasil?

Quando eu relaciono “Ismália” a essa experiência, é importante dizer que não é uma música de ódio, não é para que as pessoas pretas se sintam mal por estar dentro do abismo. “Ismália” é um sentimento de desalento e frustração de todos nós enquanto sociedade. É um grande desperdício que o Brasil comete quando joga pessoas do abismo de forma tão cruel e irresponsável. Quando eu crio essa analogia entre as situações eu estou dizendo que “Ismália” acreditou que podia tocar a lua, assim como o avô da menina Ágatha acreditou que podia pegar o diploma dela na universidade. Mas ambos terminam no meio das pedras porque foram iludidos pelo brilho dela.

Como foi ter Fernanda Montenegro lendo o poema “Ismália”?

Ela é o teatro vivo. Os crentes não dizem que você não tem que ir à igreja, e sim ser a igreja? A Fernanda Montenegro não vai ao teatro, ela é o teatro. A ideia inicial era fazer uma espécie de jogral entre Fernanda e Ruth de Souza, mas infelizmente perdemos a Ruth [morta em julho, aos 98 anos] uma semana antes da gravação.

A partir desta interpretação, de que é um poema sobre ser negro no Brasil, o fato do brilhantismo de Fernanda Montenegro transcende o fato de que ela é uma atriz branca?

Essa parada é muito perigosa. É o que eu falo sobre mover-se com base em signos muito simplórios. Se a gente se guiar única e exclusivamente por esses fatores, a gente empobrece muito as discussões e pode cair em armadilhas perigosíssimas, porque nem todo mundo que tá é, e nem todo mundo que é tá.

É um disco em que o rap, enquanto gênero, não é necessariamente o protagonista. Como é a sua relação com o rap hoje?

A gente tem um panorama muito rico e está no melhor momento da história para se fazer a música rap. Durante toda a minha trajetória, eu sou entendido como artista unicamente do rap. O que eu estou mostrando aí, e mostro há algum tempo, é que a gente é um pouco mais diverso do que isso, e eu quero de verdade conduzir o rap até o panteão da grandiosidade da música feita do Brasil. Quando eu entro no estúdio, eu pego toda a bagagem de um século de música feita no Brasil, pego isso aí e coloco dentro de uma textura contemporânea que a gente aprendeu a chamar de rap, mas nem sei se daqui a dez anos vai ser rap que chamaremos. O que falei no estúdio para o Nave (produtor do disco) é que eu gosto de chamar isso de neo-samba, assim como os gringos têm o neo-soul, em que trazem a experiência do soul para uma linguagem mais contemporânea. É o que eu faço. Porque minha referência maior não foi o J. Cole, foi o Luiz Carlos da Vila.

Crítica

Terno, mas sem perder a dureza

Por Silvio Essinger

Um artista do seu tempo, Emicida consegue eventualmente conciliar seu ímpeto produtivo (muitas vezes colaborativo) com a realização de álbuns. “AmarElo” é apenas o terceiro de sua carreira, e se organiza em torno da ideia (que não é nova em seu trabalho) de que é necessário enternecer, mas sem perder a dureza.

Eclético e ecumênico, esse é um disco que confirma o quão afiada e poética continua a ser a pena do MC, um dos grandes da sua geração do rap brasileiro. Mas que também espanta pela quantidade de participações especiais (nem todas à vontade, nem todas adequadas) que ele conseguiu espremer numa só seleção musical. Como muitos do seu tempo, “AmarElo” é um disco com informação demais para se digerir de uma vez só.

Quando é bom, ele é ótimo, como no samba “Pequenas alegrias da vida adulta”, que brilhantemente conecta Marcos Valle com o rap nacional, ou na faixa-título, que faz o mesmo, via sample, com Belchior e uma composição curiosa dos vocais de Majur e Pabllo Vittar. Já quando ele ameaça não dar certo, não é nenhuma tragédia, como na junção de Zeca Pagodinho e o Tokyo Ska Paradise Orchestra em “Quem tem um amigo (tem tudo)”ou em “Paisagem”, concessão a um certo pop good vibes que emplacou este ano.

O antídoto para o bem estar das duas faixas, porém, está logo ali do lado, no trap “Eminência parda” e no tamborzão da furiosa “Libre” — eles são a cama em que Emicida se deita com gosto, disposto a tirar o sono do cidadão de bem.

Cotação: bom.