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Cultura

'Enquanto minha voz ficar fortinha, vou cantar', diz Maria Bethânia

Aos 73 anos, cantora estreia turnê nesta sexta, prepara disco de inéditas, e outro em homenagem à Mangueira, e define falas de Bolsonaro sobre nordestinos e ditadura militar como 'barbaridades'
Maria Bethânia Foto: Divulgação / Jorge Bispo
Maria Bethânia Foto: Divulgação / Jorge Bispo

RIO — Maria Bethânia está bem-humorada. Chega ao local da entrevista, um estúdio em São Conrado, festejando o sol que bate no jardim (“não imagina o frio que está em minha casa”, diz ela, que mora ali perto e evita se deslocar muito por causa do trânsito). A cantora usa um colar com a aliança de casamento dos pais e uma foto deles estampada num pingente. Diz “olá” para o cachorro Pepê, que circula por ali, antes de iniciar a conversa.

E o papo começa lembrando como julho foi um mês atípico para a cantora e cerca de 400 felizardos que conseguiram vê-la de perto, em quatro apresentações intimistas (100 pessoas em cada dia) no Clube Manouche, no Rio. Foi uma temporada concorridíssima — ingressos esgotados em cinco minutos, anônimos dividindo centímetros quadrados com personalidades como Chico Buarque , Cacá Diegues e Regina Casé —, que serviu como uma espécie de prévia de “Claros breus”: a turnê em casas de espetáculo começa amanhã no Credicard Hall, em São Paulo, chegando ao Rio em 4 e 5 de outubro (Km de Vantagens Hall) , para depois passar por Belo Horizonte, Recife e Salvador. Os ingressos já estão à venda pelo site Tickets for Fun.

LEIA MAIS: Além de turnê, Maria Bethânia tem disco em homenagem a Mangueira já finalizado

A nova leva de shows gera um outro frio na barriga, garante a cantora (“sempre tremo, mas penso: ‘Coragem, Maria!’”). Mas ela diz que pretende levar o clima do palquinho do Manouche para os grandes espaços. Lembra-se, divertida, de situações curiosas causadas pela proximidade da plateia durante a pequena temporada carioca.

Maria Bethânia Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Maria Bethânia Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Lá, o público se sentava a poucos centímetros da artista. A ponto de ela alcançar o copo de um espectador, a quem pediu água. A cena aconteceu na estreia, mas fez tanto sucesso com a plateia que acabou se repetindo. Em outro momento, incomodada com um homem que não tirava os olhos do celular durante o show, Bethânia arrumou um jeito particular de dar o troco.

— Podia acontecer qualquer coisa no palco que ele não estava nem aí. Aquilo foi me dando tanta irritação que peguei o rabo da minha saia, passei em cima dele, e o telefone voou longe — conta a cantora, rindo da cena.

Agora, Bethânia sabe que terá que encarar não um, mas uma barreira de celulares — desta vez, apontados para ela.

— Hoje, ninguém mais assiste nada ao vivo, todo mundo vê pela telinha — observa ela. — Minha irmã ( Mabe l) cansa de me telefonar da Bahia dizendo: “Bethânia, acabei de ver seu show, fulana estava aí e fez transmissão ao vivo”.

Maria Bethania Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Maria Bethania Foto: Leo Martins / Agência O Globo

O show tem inéditas de Adriana Calcanhotto, Chico César e Roque Ferreira apresentadas no Manouche. Mas também traz algumas mudanças, como a inclusão de sete músicas (“Espelho”, inédita da paraibana Flávia Wenceslau, é uma delas), uma troca de roupa (os figurinos são de Gilda Midani) e a cenografia de Bia Lessa, que também assina a direção. Ela fará projeções de sombras usando obras de Escher, Hélio Oiticica e grafismos de Arnaldo Antunes.

'Barbaridades' de Bolsonaro

Depois de seus dois shows mais recentes — um de sambas, com Zeca Pagodinho, outro, de sucessos —, Bethânia diz que estava sentindo falta dos espetáculos autorais, costurados por dramaturgia e músicas inéditas. Nas férias de verão em Santo Amaro, onde só sobe ao palco montado sobre a caixa d'água do quintal da casa da família, começou a alinhavar o fio condutor desta apresentação.

— Tinha dez canções para o disco novo, mas era preciso escolher o que fazia sentido cenicamente — conta. — Tive a compreensão clara de que queria falar de histórias comuns de pessoas comuns, de amor, de claro, escuro, de não saber o caminho, achar o caminho, dar a volta por cima. Veio tudo como uma maré muito forte de rebentação.

E o palco é uma missão.

— Outro dia, uma cantora perguntou: “Como é que pode você cantar assim com 73 anos?”. Enquanto minha voz quiser ficar aí, fortinha, vou cantar, graças a Deus, a Nossa Senhora, aos meus orixás… Depois, vou pra Santo Amaro, bem quietinha.

Maria Bethania Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Maria Bethania Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Antes que isso aconteça, ela continua fazendo da ribalta seu palanque (“não gosto de política, a minha tribuna é o palco”). É em cena que se coloca, como quando cantou “Caipira de fato” (de Inezita Barroso) usando a palavra nordestina na frase “sou sertaneja, não me nego e faço gosto”, no Manouche, em resposta ao presidente Jair Bolsonaro, que se referiu aos governadores do Nordeste como “paraíbas”.

— Não gosto que falem mal da minha região. O sertanejo talvez seja o homem mais nobre que existe no Brasil, de uma dignidade…

Ela também não gostou da recente declaração do presidente sobre o desaparecimento de Fernando Santa Cruz, pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, durante a ditadura (Bolsonaro insinuou que ele teria sido morto por um grupo de esquerda).

— É uma barbaridade. Tive irmão exilado, amigos mortos. Por três anos, na ditadura, fui obrigada a me apresentar toda semana no DOI-CODI, por conta do livro “Maria Bethânia, guerreira guerrilha”, do Reynaldo Jardim. Também fui presa. Não quero nem lembrar daquela época. Quase morri, meu irmão também.

'Tem que ter atenção'

Apesar dos problemas, ela garante: não sai do Brasil.

— Sempre me perguntam “você não quer morar em Portugal?”. Não! Não quero morar em lugar nenhum além daqui. A não ser que não deixem.

Bethânia também se colocou no debate sobre canções que hoje podem soar mal . Ela considera saudável o revisionismo, por parte de cantores e compositores brasileiros, de letras de canções consideradas racistas e homofóbicas.

— Quando essas canções foram feitas, havia uma ingenuidade qualquer e não tinha essa perseguição tão violenta — acredita. — Porque viado apanha, morre, prostituta apanha e morre, é esfaqueada, mulher casada é morta só porque o marido não quer que beba água naquele copo. Tem que ter atenção mesmo, porque no subconsciente pode não estar, mas uma hora bate.