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Cultura Coronavírus

Enquanto 'A peste' vira best-seller, editor de Albert Camus está num navio sem saber se poderá sair

Maior especialista no autor, Raymond Gay-Croiser explica ao GLOBO por que obra é fundamental em tempos de coronavírus
Edição de 'A peste', em francês Foto: Reprodução
Edição de 'A peste', em francês Foto: Reprodução

No livro mais citado desde a explosão da pandemia de covid-19, os habitantes de Orã, na Argélia, começam a morrer após alguns dias de febre e gânglios inflamados. Em “ A peste ”, escrito em 1947 pelo franco-argelino Alberto Camus , o prefeito bota a cidade toda de quarentena. E ninguém mais pode entrar ou sair.

Enquanto o coronavírus se espalha pelo mundo, Raymond Gay-Crosier , um dos maiores especialistas na obra de Camus, encontra-se a bordo de um cruzeiro, atravessando a costa da América do Sul, sem saber onde irá desembarcar. Suíço radicado nos Estados Unidos, onde dá aulas na Universidade da Flórida, ele está a caminho de Buenos Aires. Para conter a expansão da doença, o governo argentino também fechou suas fronteiras. Como em Orã.

— Fomos advertidos a permanecer em nossas cabines, o que nos garante algum conforto, mas, dadas as perspectivas, não nos ajuda a manter a calma — diz Gay-Crosier.

“A peste” voltou à lista de mais vendidos em países severamente castigados pelo coronavírus, como a Itália e França , onde a procura pelo romance quadruplicou em uma semana. No Brasil, a procura pelo livro na Amazon triplicou na primeira quinzena de março. O Grupo Editorial Record, que publica Camus no país, informa que as vendas do livro aumentaram 65%. Nem todos fazem coro, porém. Em um artigo publicado no jornal espanhol “El País”, o Nobel de Literatura peruano Mario Vargas Llosa disse que “A peste” é “o pior romance de Camus” e lamentou que esse livro “medíocre” tenha voltado à lista de best-sellers.

Apesar da conexão instável no navio, Gay-Croiser, que coordenou a edição da obra completa de Camus na França, conversou com O GLOBO, por e-mail. E diz por que ler “A peste” neste momento, além de indicar outras leituras para a quarentena.

O francês Raymond Gay-Crosier, estudioso da obra de Albert Camus Foto: Acervo pessoal
O francês Raymond Gay-Crosier, estudioso da obra de Albert Camus Foto: Acervo pessoal

Como a pandemia está afetando sua viagem? Já sabe se poderão desembarcar em Buenos Aires?

O navio zarpou no dia 5 de março, em Santiago, no Chile. Todos aqui continuam saudáveis e, sendo um cruzeiro de luxo, estamos sendo mimados como de costume. Estamos confinados porque as autoridades argentinas não permitiram que desembarcássemos e seguíssimos para o aeroporto, onde pegaríamos um avião para o Rio de Janeiro e depois para Atlanta e Jacksonville, nos EUA. Fomos advertidos a permanecer em nossas cabines, o que nos garante algum conforto, mas, dadas as perspectivas, não nos ajuda a manter a calma.

“A peste” voltou à lista de best-sellers de países como França e Itália. Por que ler este romance em meio à epidemia de coronavírus?

As pessoas costumam voltar para grandes textos de ficção para lidar com a realidade, para formular boas perguntas e elaborar respostas concretas baseadas no comportamento dos personagens. “A peste” ainda está vivo na memória de muitos leitores, não só na França, que se recordam de como o livro apresentou um retrato ficcional, porém realista, de como as pessoas reagem ao enfrentar um inimigo mortal.

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O senhor se refere à interpretação de que “A peste” seria uma metáfora da França ocupada pelos nazistas, correto?

Sim. Quando publicado, o livro foi imediatamente considerado uma referência mal disfarçada à ocupação alemã e às dificuldades da Resistência França. No livro, a primeira reação dos cidadãos à peste é se isolar ou cair em depressão. As autoridades instintivamente se negam a tomar medidas adequadas e colocam interesses políticos e econômicos acima da saúde pública. Um dos personagens do romance, Raymond Rambert, é um jornalista que acaba desistindo de deixar a cidade e, por isso, não reencontra a mulher amada. Ele se junta ao Dr. Rieux na luta contra a peste e simboliza as difíceis escolhas que os membros da Resistência Francesa precisavam fazer.

Camus também desenvolveu um pensamento filosófico em diálogo com o existencialismo, resistiu aos nazistas e denunciou o autoritarismo soviético. O que podemos aprender com ele em tempos de epidemia e ascensão de regimes autoritários?

O contexto filosófico, essencialmente ético, de “A peste” fica mais claro quando Camus publica o ensaio “O homem revoltado”, em 1951. Somente a recusa metódica da morte, do absurdo, explica as motivações de Rambert e Rieux. A rebelião contra a ameaça iminente traz esperança que, embora temporária, restabelece a dignidade humana. “A peste” exemplifica as teses dos dois grandes ensaios filosóficos de Camus, “O homem revoltado” e “O mito de Sísifo” (personagem da mitologia grega condenado pelos deuses a, todos os dias, empurrar uma pedra de mármore morro acima antes que ela caísse novamente) . Aliás, em “A peste”, Sísifo é representado por Joseph Grand, um aspirante a escritor que reescreve inúmeras vezes a mesma frase.

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Antes de Camus, outro autor recuperado em tempos de crise foi George Orwell, que voltou à lista de best-sellers depois da eleição de Donald Trump e outros populistas. Por que voltamos aos clássicos em tempos de incerteza?

Grandes artistas oferecem respostas e retratos exemplares. Pense em “Guernica”, de Picasso. Por meio da ficção (ou até da pintura), eles provocam reações cujo efeito às vezes é nos reassegurar de que nem tudo está perdido.

O que mais o senhor recomenda ler na quarentena?

“Guerra e paz”, de Tolstói, e os romances de Dostoiévski, que influenciaram muito Camus.

Editora de Camus no Brasil anuncia ‘Quarentena Literária’

O Grupo Editorial Record, que publica os livros de Albert Camus no Brasil, vai promover uma "Quarentena Literária": encontros virtuais entre autores, editores, críticos literários e, é claro, leitores. A estréia será na próxima segunda-feira (23), às 10h. No primeiro episódio, o crítico literário Manuel da Costa Pinto discute... “A peste”, de Camus.

Quem quiser participar, deve acessar o site www.quarentenaliteraria.com , consultar o calendário dos programas e se inscrever no episódio que se interessar. Depois, receberá, por e-mail, uma notificação quando o bate-papo for começar. Os leitores poderão mandar perguntas – só não vale ofender outros participantes ou fazer perguntas impróprias.

– A Quarentena Literária vai funcionar como um clube do livro. Os encontros virtuais com os autores, editores e críticos vão contribuir não só para estimular a leitura, mas para trazer um pouco de lazer e descontração para quem se vê obrigado a ficar em casa – explica Roberta Machado, vice-presidente do Grupo Editorial Record. – A leitura é um excelente passatempo neste momento de solidariedade.

Até o fim de março, a “Quarentena Literária” terá seis episódios. Abaixo, confira as datas e quais autores, críticos e editores vão apresentar cada um dos programas:

Manuel da Costa Pinto (crítico literário), na segunda (23), às 10h

Ray Tavares (autora de "Confidênicas de uma ex-popular), na segunda (23), às 20h

Lucas Rocha (autor de "Você tem a vida inteira"), na terça (24), às 21h

Carina Rissi (autora da série "Perdida"), na quarta (25), às 19h

Fabrício Carpinejar (autor de "Família é tudo"), na quinta (26), às 17h

Regina Navarro Lins (autora de "A cama na varanda"), na sexta (27), às 17h