Exclusivo para Assinantes
Cultura

Ensaios inéditos, biografia e HQ iluminam a vida e a obra de Hannah Arendt, pensadora citada até na CPI da Covid

Textos reunidos em 'Pensar sem corrimão' esclarecem o que a filósofa, que não era nem direita nem de esquerda, pensava sobre a revolução e a segregação racial nos Estados Unidos
A filósofa política Hannah Arendt, em seu apartamento, em Nova York, em 1972 Foto: Tyrone Dukes / The New York Times
A filósofa política Hannah Arendt, em seu apartamento, em Nova York, em 1972 Foto: Tyrone Dukes / The New York Times

A historiadora Heloisa Starling sonha com um livro que ainda não existe: “Bom dia, Frau Arendt! Seja bem-vinda ao Brasil do século XXI!”. Esse livro partiria dos conceitos formulados pela filósofa política Hannah Arendt (1906-1975), autora de “Origens do totalitarismo”, para explicar um país que assiste à “cristalização de ingredientes totalitários na forma de ideologias e movimentos políticos” .

— O conceito de banalidade do mal revela as razões por trás de políticas públicas contrárias à ciência — afirma Starling.

Enquanto “Bom dia, Frau Arendt!” não aparece, três lançamentos iluminam a vida e o pensamento da filósofa alemã que se esforçou para entender a dimensão do mal, a liberdade e como amar um mundo tão perverso. Em abril, saiu a graphic novel “As três fugas de Hannah Arendt”, do americano Ken Krimstein. No mês passado, foi a vez do perfil biográfico “Arendt: entre o amor e o mal”, da sueca Ann Heberlein , que traz um posfácio assinado por Starling. Na próxima semana, chega às livrarias “Pensar sem corrimão”, coletânea de ensaios inéditos, escritos entre 1953 e 1975, organizada por Jerome Kohn, testamenteiro literário de Arendt, que afirma: a demanda pelas obras da filósofa cresceu 3.000% nas últimas duas décadas.

Uma filósofa poeta: Poesia de Hannah Arendt será publicada no Brasil em setembro

Arendt tem sido chamada a explicar os novos populismos e outros fenômenos contemporâneos. Até na CPI da Covid ela foi citada. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) chegou a comparar o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello ao oficial nazista Adolf Eichmann, cujo anseio por cumprir ordens, sem jamais questioná-las, inspirou o conceito de “banalidade do mal”, exposto pela filósofa em seu livro “Eichmann em Jerusalém”.

“Pensar sem corrimão”, publicado pela primeira vez em 2018 nos Estados Unidos, ajuda a elucidar algumas controvérsias nas quais Arendt foi envolvida. Em 2014, a americana Kathryn Gines publicou o livro “Hannah Arendt and the Negro Question”, no qual argumenta que a filósofa não compreendeu a natureza política do racismo. Num ensaio de 1959 sobre a dessegregação racial nos Estados Unidos, Arendt chamou de oportunistas e negligentes os pais negros que enviaram seus filhos a escolas onde eles seriam hostilizados pelos brancos.

Diversifique sua biblioteca: Quem são os pensadores negros que nos ajudam a entender o Brasil e o mundo?

Em uma carta enviada ao filósofo Robert M. Hutchins em 1957 e incluída em “Pensar sem corrimão”, ela havia defendido que a dessegregação começasse, por exemplo, no transporte público (“o aspecto mais ultrajante da segregação”), uma vez que as escolas se encontrariam numa “área de fronteira em que direitos e interesses públicos e privados se sobrepõem”. “O direito à discriminação na esfera privada deve ser mantido intacto, independentemente de qualquer posição contrária à segregação que se possa ter”, afirmou. No entanto, ela questionou “se a discriminação pode se estender ao direito de escolher o seu vizinho”.

— Em 1955, ela confessou, ao escritor afro-americano Ralph Ellison, não ter entendido os sacrifícios das famílias negras e de seus filhos — afirma Kohn, organizador de “Pensar sem corrimão”. — Mas o argumento dela é válido: não vamos acabar com o racismo de cima para baixo, por meio de decisões do Estado.

Ilustração de "As três fugas de Hannah Arendt", graphic novel de Ken Krimstein que reconta a vida da filósofa política alemã, publidada dela WMF Martins Fontes Foto: Reprodução / Divulgação
Ilustração de "As três fugas de Hannah Arendt", graphic novel de Ken Krimstein que reconta a vida da filósofa política alemã, publidada dela WMF Martins Fontes Foto: Reprodução / Divulgação

Esquerda ou direita?

De uns tempos para cá, Arendt tem sido acusada de “conservadora” por militantes de organizações de esquerda simpáticas ao stalinismo (caracterizado como totalitarismo pela filósofa). Os ensaios de “Pensar sem corrimão” dificultam ainda mais a tarefa de posicioná-la no espectro ideológico. Alguns textos analisam um dos temas mais quentes do século XX: a revolução.

Arendt diferencia revoluções sociais, realizadas para libertar os miseráveis da “necessidade” (ou seja, da pobreza), das políticas, cujo objetivo é a conquista da liberdade, isto é, a admissão de todos os cidadãos nos assuntos públicos. A maioria das revoluções começa política, mas se torna social ao eleger o fim da miséria e a felicidade dos oprimidos como seu objetivo. A partir daí, descambam para tirania. A superação da pobreza seria um pré-requisito para as revoluções, e produto de soluções técnicas econômicas, não políticas. A Revolução Americana (1776) resultou numa república, e não no Terror, como a Francesa (1789), por ter ocorrido numa sociedade relativamente igualitária (em sua análise, ela passa por cima da escravidão).

Carlo Ginzburg: 'Os usos políticos da mentira são notícia velha'

A desconfiança de revoluções socializantes não impediu a filósofa de nutrir uma “simpatia romântica pelo sistema de conselhos” e admiração pela marxista polonesa Rosa Luxemburgo, assassinada durante a frustrada Revolução Alemã (1918-1919). Num ensaio sobre a revolta dos húngaros contra os soviéticos, em 1956, ela elogiou o caráter “genuinamente democrático” dos conselhos populares, “única alternativa ao sistema partidário”, que reaparecem, teimosamente, “toda vez que o povo consegue levantar a voz”.

Arendt reconhecia não se posicionar “em lugar nenhum”. “A esquerda pensa que sou conservadora e os conservadores, às vezes, pensam que sou da esquerda, ou dissidente”, afirmou numa conferência em 1972. Ann Heberlein, a biógrafa sueca, confirma que ela não era de direita ou de esquerda.

— Seja você de direita, seja de esquerda, leia Hannah Arendt, porque ela o fará pensar. Esse era o objetivo dela: que as pessoas pensassem por si próprias — diz.

Sai pra lá, Derrida: A desconstrução de Paulo Arantes

Ensinar a “pensar sem corrimão” ou seja, sem o apoio de teorias ou ideologias que têm a pretensão de explicar o mundo, é a principal contribuição da filósofa ao debate contemporâneo.

— Arendt nos convida a pensar de peito aberto, a voltar às coisas elas mesmas, como queriam os filósofos fenomenológicos, sem recorrer a teorias, preconceitos ou achar que tudo é fascismo — afirma Eduardo Jardim , responsável pela revisão técnica de “Pensar sem corrimão” e um dos fundadores dos estudos arendtianos no Brasil. — É isso que faz dela uma pensadora política tão instigante.

Starling concorda e lembra que Arendt comparou o pensamento a uma evolução: era “o vento, que, mesmo invisível, tira tudo do lugar”.

— É como a canção do Lupicínio Rodrigues: “O pensamento parece uma coisa à toa / Mas como a gente voa quando começa a pensar” — diz. — Frau Arendt abre o caminho para imaginarmos o futuro.

Serviço:

"Pensar sem corrimão: compreender (1953-1973)"

Autora: Hannah Arendt. Organização: Jerome Kohn. Tradução: Beatriz Andreioulo, Daniela Cerdeira, Pedro Duarte, Virginia Starling. Editora: Bazar do Tempo. Páginas: 594. Preço: R$ 92.

Capa "Pensar sem corrimão", coletânea de ensaios inéditos e dispersos da filósofa política Hannah Arendt, publicado pela Bazar do Tempo Foto: Reprodução / Divulgação
Capa "Pensar sem corrimão", coletânea de ensaios inéditos e dispersos da filósofa política Hannah Arendt, publicado pela Bazar do Tempo Foto: Reprodução / Divulgação

“As três fugas de Hannah Arendt: uma tirania da verdade”

Autor: Ken Krimstein. Editora: WMF Martins Fontes. Páginas: 234. Preço: R$ 79,90.

Capa de "As três fugas de Hannah Arendt", graphic novel de Ken Krimstein que reconta a vida da filósofa política alemã, publidada dela WMF Martins Fontes Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "As três fugas de Hannah Arendt", graphic novel de Ken Krimstein que reconta a vida da filósofa política alemã, publidada dela WMF Martins Fontes Foto: Reprodução / Divulgação